O cerco de Donald Trump aos imigrantes ameaça deflagrar uma crise humanitária no México que pode ampliar-se à económica e de segurança, expandindo-se a Honduras, El Salvador e Guatemala, diz à Lusa uma especialista na região.
“Estamos perante o risco de uma crise económica com consequências na segurança e até na saúde pública. A crise humanitária, de certa forma, já começou e tende a agravar-se com a proibição de uma via legal para os pedidos de asilo. Os esforços por administrar essas crises não devem ser suficientes se as deportações acontecerem no volume que Donald Trump anunciou”, indica à Lusa Margarita Nuñez, antropóloga e coordenadora do programa de Assuntos Migratórios da universidade Iberoamericana do México.
Além dos estudos sobre a matéria, a especialista faz parte de uma equipa que realiza um trabalho de campo, percorrendo albergues pelo país e entrevistando imigrantes.
“Se havia uma via para se chegar legalmente aos Estados Unidos, essa alternativa deixou de existir assim que Trump assumiu. Portanto, teremos cenas de migrantes a viver nas ruas do México”, descreve, acrescentando que “aos que não podem entrar, juntar-se-ão os que serão deportados em grande volume”.
O Presidente Trump cancelou a aplicação CBP One da Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês), através da qual os imigrantes podiam agendar uma apresentação pessoal do pedido de asilo em algum dos onze postos de fronteira entre o México e os Estados Unidos. Cerca de 300 mil pessoas ficaram num limbo do lado mexicano à espera de um dia serem atendidos.
A eliminação da CBP One combina-se com o regresso da política “Permaneça no México”, aplicada em 2018, durante o primeiro mandato de Trump. Essa política obrigou cerca de 70 mil pessoas a esperarem no México pela audiência na corte de imigração dos Estados Unidos.
Aos poucos, esses dias transformar-se-ão em meses e os albergues deixarão de ser suficientes para tanta gente. Muitos passarãom a viver nas ruas ou em barracas improvisadas na margem do rio que separa os dois países.
“Aqui, na Cidade do México, os imigrantes já vivem nas ruas. Em Tijuana, documentámos a crise humanitária no passado recente. Nesses acampamentos, muitas pessoas não comiam três vezes ao dia, não tinham acesso à saúde, tinham doenças como varíola em crianças que não eram atendidas. Havia também consumo de drogas. Acredito que esse risco esteja de volta e que se expanda a outras cidades mexicanas e, inclusive, a outros países porque antes não havia os deportados que são agora esperados”, prevê Nuñez.
O universo de pessoas que podem ser deportadas ronda os 11 milhões de imigrantes ilegais, segundo o Departamento de Estatísticas de Segurança Nacional. O número, porém, segundo especialistas, pode estar mais próximo de 15 milhões. Trump prometeu expulsar um milhão por ano, número que geraria um colapso no México e nos países do chamado Triângulo do Norte: Guatemala, Honduras e El Salvador.
Calcula-se que cerca de 30 milhões de mexicanos vivam nos Estados Unidos, dos quais cerca de quatro milhões estejam em situação irregular. Depois do México, Honduras, Guatemala e El Salvador são os países com o maior número de cidadãos ilegais nos Estados Unidos.
Cerca de 560 mil hondurenhos - 5% da população do país - vivem de forma ilegal nos Estados Unidos, tal como cerca de 750 mil ou 4% da população da Guatemala e 436 mil salvadorenhos, equivalentes a 7% da população.
Na Guatemala, as remessas de ajuda familiar dos que emigraram representam 20% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. O número sobe para 24% em El Salvador e para 25% de toda a economia de Honduras.
No México, as transferências de parentes representam 4% do PIB, mas, em termos nominais, é o maior receptor de remessas da América Latina.
“Talvez a relação entre as remessas de mexicanos com o PIB não seja tão significativa quanto nos países centro-americanos, mas esse dinheiro vai diretamente para famílias que vivem dessas remessas para gastos correntes como colégios e supermercados e até para pagar hipotecas. A perda desse dinheiro teria um impacto gigantesco na dinâmica de vida de milhões de lares mexicanos”, adverte Margarita Nuñez, sublinhando ainda o dano que, paradoxalmente, as deportações provocariam na própria economia norte-americana.
“Setores inteiros da economia dos Estados Unidos dependem da mão-de-obra do imigrante irregular seja na agricultura, na construção ou nos serviços”, destaca.
Além disso, os 65.000 milhões de dólares que os mexicanos do outro lado da fronteira enviam aos parentes deste lado representam apenas 20% das receitas pessoais. Os restantes 80% ficam nos Estados Unidos.
Os milhares de emigrantes latino-americanos do lado mexicano da fronteira e os milhares - talvez milhões- que ainda serão deportados podem ainda gerar uma crise de segurança.
O reduzido orçamento público mexicano, a falta de infraestrutura suficiente e a limitada capacidade da economia de absorver tanta mão-de-obra desempregada formam um coquetel propício para a marginalidade.
“Vejo uma situação na qual, por necessidade ou por desespero, as pessoas acabam em organizações criminosas ou aumentando a população na rua e o uso indevido de drogas. Pessoas que não podem entrar nos Estados Unidos, que agora não podem mais pedir asilo e as que virão deportadas de várias nacionalidades formam um cenário de risco, que não está a ser devidamente prevenido”, alerta Margarita Nuñez.