O sírio Mohamed não pára de cortar a Baklava enquanto conta, sorridente, o seu percurso da última década, que o trouxe como refugiado até Berlim, onde acompanha hoje as notícias doces dos últimos dias, mas que precisam de ser digeridas.
“Ainda é cedo para pensar em voltar”, admite, enquanto separa pedaços do doce folhado com pistácio. “Para visitar, sem dúvida. Para ir definitivamente, é preciso esperar para ver”, confessa um dos pasteleiros da King Konditorei que fez questão de assinalar a queda do regime de Bashar al-Assad.
“O nosso chefe decidiu fazer um bolo gigante com a bandeira da Síria. Abrimos e distribuímos fatias na rua. Festejaram connosco umas 80 pessoas de diferentes nacionalidades. E continuamos a festejar”, contou à lusa este sírio a trabalhar em plena Sonnenalle, uma das ruas principais do bairro de Neukölln.
“Estou feliz na Alemanha, tenho um bom trabalho, falo bem o idioma, tenho duas filhas. Integrei-me bem e tenho de ter isso em conta para o meu futuro, e, principalmente, para o futuro delas”, partilha em declarações à Lusa.
Com eleições em cerca de dois meses, a situação dos sírios já está a tornar-se tema da campanha. A extrema-direita sugere o regresso de sírios ao país de origem, e Jens Spahn, antigo ministro da Saúde e membro do partido conservador CDU, que lidera as sondagens, chegou a propor em entrevista um apoio inicial de mil euros para quem queira regressar.
“A Alemanha tem uma grave falta de trabalhadores qualificados, como médicos, engenheiros, entre outros. Portanto, não haverá deportação em massa”, acredita Hassan Mousa que faz parte da oposição síria, a viver na cidade alemã de Heidelberg.
Chegou à Alemanha em 1998, mas admite que “gostaria de voltar e participar na reconstrução da Síria”. Não tem dúvidas, a queda de Bashar al-Assad foi “o melhor que podia ter acontecido ao país”.
De acordo com o Departamento Federal de Estatística, cerca de 973 mil sírios viviam na Alemanha no final de 2023. Cerca de 712 mil receberam o estatuto de refugiado. Muitos chegaram em 2015 em busca de proteção, quando Angela Merkel era chanceler.
A escritora síria Lina Atfah veio um ano antes. No seu país, foi impedida de participar em eventos literários ou de publicar livros. Foi vítima de interrogatórios e investigações e acusada de “blasfémia e de minar o prestígio do Estado”.
“A Alemanha devolveu-me a minha voz e a minha identidade como ser humano, mulher e poeta”, partilha.
“A queda de Bashar al-Assad é um momento grandioso e histórico que o povo sírio há muito aguardava (...) Mesmo depois da sua queda, os sírios continuam a procurar os seus entes queridos em prisões subterrâneas secretas”, acredita, acrescentando que o avô esteve preso durante 12 anos.
“Para nós, sírios, a queda deste criminoso marca o início de uma grande mudança. Tudo o que se seguirá será melhor e muito mais fácil de enfrentar (...) No entanto, após 53 anos de tirania e opressão, incluindo 14 anos de uma revolução que nos custou muito caro, a reconstrução não acontecerá de um dia para o outro. Precisamos de tempo para sarar, fazer justiça e chegar a uma reconciliação nacional que sirva a todos os sírios. Isto irá certamente acontecer, mas leva tempo”, enfatiza.
Para Lina Atfah, voltar é um grande desejo, mas tudo depende dos próximos meses, do próximo governo, e das condições de vida e rendimento médio.
“Tenho dois filhos gémeos, um rapaz e uma rapariga, com um ano e oito meses de idade. A segurança deles é uma prioridade para mim e quero que não passem pelo mesmo sofrimento que eu passei. Para além disso, após dez anos na Alemanha, construí memórias, amizades e uma ligação profunda a este lugar”, confessa, admitindo ter o coração dividido em dois.
Em 2024, a Síria foi novamente o país de origem do maior número de pessoas que buscam asilo na Alemanha. Foram quase 75 mil pedidos submetidos até novembro. Um dia depois da queda do regime de Assad, o Departamento Federal de Migração e Refugiados (BAMF) emitiu um congelamento imediato dos pedidos de asilo de cidadãos sírios.
“O Governo alemão deixou de aceitar novos pedidos de asilo de sírios, o que indica a sua confiança no comportamento dos grupos atualmente no poder na Síria e a sua preparação para uma fase de transição em que os sírios poderão deixar de precisar de pedir asilo”, acredita Atfah, mostrando-se preocupada com o crescimento da extrema-direita no país e as suas consequências.
Na edição de segunda-feira, o jornal Berliner Zeitung perguntava, “Merkel disse que 70% dos refugiados sírios querem voltar para casa, mas é verdade?” O médico sírio Khaled responde.
“Se me perguntassem na semana passada se eu quereria voltar à Síria, diria imediatamente que não. Mas agora sinto como se tivesse nascido outra vez. Tenho outra vez orgulho na Síria. Está tudo muito fresco ainda e emocional. Por um lado, digo imediatamente que sim, quero voltar. Por outro, é preciso ver, passo a passo, como é que as coisas vão avançar. Aqui tenho um bom trabalho, amigos, e um futuro para o meu filho”, comenta à lusa.
Khaled chegou à Alemanha em 2014 com visto de estudante. A mulher veio um ano depois como refugiada, depois de uma travessia atribulada. O médico, que passou um ano a aprender alemão, ainda está a tentar assimilar as mudanças que pareciam não chegar.
“Antes da guerra a vida era boa, quando a guerra chegou senti que deixei de ter uma pátria. Nunca pensei que pudesse chegar este dia, o dia em que Assad deixa o poder. Cheguei a pensar que ele estaria lá para sempre. Até hoje, pouco contei sobre a Síria ao meu filho, ele tem cinco anos. Porque para mim a Síria tinha deixado de existir, acreditei mesmo que nunca mais lá voltaria. Cheguei a pensar que Assad era como o destino, não podia ser mudado”, conta.
Recorda os tempos em que esteve preso, mas acredita que há uma “obrigação moral de voltar, de ajudar a reconstruir a Síria”.
Mohamed, da “King Konditorei” concorda. “O país não tem recursos e precisa de nós”, assume.
“Tenho lá o meu passado, a minha mãe, mas aqui tenho o meu futuro, as minhas duas filhas. É preciso pensar bem antes de decidir”, conclui.