Impedidos de usar as casas de banho da escola, alunos transgénero chegam a estar oito horas sem ir aos lavabos, havendo casos em que são agredidos quando tentam entrar, denunciam as famílias.
Nos dias em que tem aulas das 08:00 às 16:00, Manuel (nome fictício) passa oito horas sem ir à casa de banho. Não se sente bem na das raparigas e não arrisca ir à dos rapazes, contou à Lusa o rapaz trans de 14 anos, que frequenta uma escola da zona de Lisboa.
A história de Manuel é a de um rapaz que nasceu num corpo de menina e, há dois anos, iniciou o processo de mudança, tendo já descoberto que até os hábitos mais simples podem tornar-se verdadeiros desafios.
A casa dos banho dos professores está-lhe interdita e Manuel chegou a perguntar aos funcionários se podia usar a dos deficientes, mas também lhe foi negado.
Para contornar o problema, decidiu “passar o dia sem beber líquidos”, ignorando os alertas médicos sobre os perigos para a sua saúde.
A cerca de 100 quilómetros de distância, em Leiria, Jorge (nome fictício) também viveu uma história semelhante. A estudar na mesma escola há vários anos, toda a gente o conhecia quando, no ano passado, assumiu que tinha nascido no corpo errado. Nesse dia, o acesso à casa de banho das raparigas foi-lhe barrado.
“Uma vez tentou entrar, mas as raparigas trataram-no mal”, contou à Lusa a mãe, acrescentando que “nem arrisca entrar na dos rapazes”.
A direção escolar sugeriu que usasse a casa de banho dos funcionários, mas a família optou por outra solução: Todos os dias, à hora de almoço, a mãe leva o filho a casa.
Passar todo o dia na escola sem ir à casa de banho é recorrente, segundo a psicóloga Ana Silva, que trabalha na Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (AMPLOS), onde chegam pedidos de ajuda de todo o país.
Quanto à opção oferecida pelas escolas de criar um balneário ou casa de banho só para aquele aluno, a psicóloga lembra que “estão a discriminar na mesma e a acentuar que aquela pessoa é diferente”.
“Muitas vezes, já têm uma expressão de género que não corresponde ao seu sexo biológico e sabem que correm o risco de serem insultados ou mesmo agredidos”, contou a psicóloga, que não consegue compreender as recentes críticas ao diploma sobre o direito à autodeterminação de género nas escolas, aprovado este mês no parlamento.
O diploma, que o partido Chega chegou a classificar de “política de retrete”, prevê, entre outras medidas, que todos possam aceder “às casas de banho e balneários, assegurando o bem-estar de todos, procedendo-se às adaptações que se considerem necessárias”.
Alguns deputados questionaram a segurança dos alunos e nas redes sociais multiplicaram-se os discursos de ódio e medo: “Não são as outras crianças e jovens que estão em risco, mas sim estas, que querem passar despercebidas. Mas sabe-se que são muitas vezes vítimas de ‘bullying’, de agressões verbais e até físicas”, disse Ana Silva.
Quando têm amigos, pode ser mais fácil, mas nem por isso menos humilhante: “Os amigos entram primeiro e veem se está alguém, depois ficam à porta a ver se aparece alguém e só saem quando lhes dizem que podem sair. Não podem entrar em sair livremente como qualquer outra pessoa”, explicou a psicóloga, com base em depoimentos de crianças e famílias.
Mas há casos de sucesso, como uma escola em Vila do Conde, que criou uma “casa de banho sem género”, à semelhança do que acontece nos aviões ou em alguns restaurantes.
Amanda, hoje com 18 anos, também ia a casa, porque ficava perto, mas desde sempre a escola de Beja, onde estudou, lhe abriu as portas das casas de banho dos professores.
Numa terra pequena, de interior, em que toda a gente se conhece, o processo de transformação social foi “super tranquilo”, contou a mãe, e a aluna acabou por usar o wc das raparigas.
O tema motivou pelo menos uma queixa em 2022 à Comissão Para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), além de dois pedidos de informação sobre a utilização de casas de banho e outro sobre a utilização de balneários.
Para as crianças, adolescentes e famílias com quem a Lusa falou é essencial a promulgação do diploma que define as regras de como devem agir as escolas e que foi aprovado este mês no parlamento.
Mesmo as famílias que sentiram o apoio da escola, como a de Amanda, apelam a Marcelo Rebelo de Sousa para que aprove a lei “que vai ajudar muitos miúdos que infelizmente frequentam escolas onde se continua a dizer ‘se’ e ‘mas’ para colocar entraves, quando se está só a falar de direitos humanos, nada mais”.