O mal que o dinheiro faz à cabeça da gente é ainda mais nocivo do que a fama, porque a fama abrange apenas meia dúzia de pessoas, ao passo que o dinheiro toca na existência de milhões. É claro que a fama envenena duplamente, porque caminha de braço dado com o dinheiro, mas também se pode considerar que o resto das pessoas está duplamente envenenado, porque, no fundo, todos ambicionam tornar-se famosos, nem que seja em segredo.
Esta é uma passagem do livro ‘Cadernos Para Um Despertar’, de Salazar Silva, uma obra que é um tesouro. Já o disse várias vezes e volto a repetir: é um tesouro. Reconheço que em termos de qualidade literária não é grande coisa, antes pelo contrário, o texto contém até um indelével e desconcertante traço de mediocridade, mas isso também me fascina. Sempre que me ponho a ler, ou melhor, a reler ‘Cadernos Para Um Despertar’ sinto que estou a ler, ou melhor, a reler os meus próprios pensamentos, como se fosse um livro mágico, e dou por mim perdido no labirinto das palavras, sem entender o sentido geral da mensagem.
Então – escreve Salazar Silva – acontece que andamos todos envenenados com a presença e a necessidade do dinheiro, bem como com a sombra e a ambição da fama. Para dizer a verdade, queremos que seja assim para sempre, eternamente. E também cremos, sem réstia de dúvida, que o dinheiro e a fama constituem o caminho, a verdade e a vida.
Todos os que tentam outro modo de vida, um estilo alternativo, outra via, cedo ou tarde fracassam mediante o domínio imperial do dinheiro e da fama, a sua força transcendente, o seu poder absoluto. Os que não são hipócritas costumam procurar a salvação na modéstia, na frugalidade, na discrição e não raras vezes no apagamento, no retiro, no desaparecimento. Recolhidos, apagados, ocultos, esperam a chegada da morte. Nada mais.
Como é óbvio, muitas destas pessoas vivem deprimidas, desesperadas, sempre à beira da loucura, ou já completamente loucas, doentes, perdidas. Outras recorrem a estranhos métodos de bem-aventurança, que vão da psiquiatria à religião, do vinho aos ansiolíticos, da arte aos cultos esotéricos e outros que tais. Poucos resistem ao natural.
Seja como for – sublinha Salazar Silva –, a pedra basilar mantém-se inalterada, pura, íntegra: em todo o lado, mesmo no lado mais insuspeito, habita a alma do dinheiro, por vezes dissimulada, com ar de inocente e coitadinha, mas sempre presente. E a fama também. Podemos mesmo dizer que a imaterialidade do dinheiro e da fama permanece viva quando ainda não há dinheiro nem fama e sobretudo quando já não há dinheiro nem fama.
O obscuro Salazar Silva conclui o pensamento de forma horrível e devastadora: Um tiro na cabeça, às vezes, resolve o problema. Mas ninguém sabe se vale a pena.
No parágrafo seguinte, muda drasticamente de assunto e escreve assim: Por falar em cornos, vou contar a história do Senhor A., traído e abandonado pela mulher.
(É estranho, porque até aqui ele não tinha mencionado a palavra ‘cornos’...)
No princípio, o Senhor A. chorava todos os dias, várias vezes ao dia, mas sobretudo ao acordar e antes de adormecer. Ao cabo de um ano, já não chorava todos os dias, mas apenas um por semana, às vezes quando menos esperava, pelo que enfrentou algumas situações embaraçosas, como chorar compulsivamente num restaurante muito fino cheio de gente muito fina. No decurso do terceiro ano, o choro tornou-se mais esparso e assemelhava-se aos latidos breves e bruscos de um cãozinho rafeiro perdido numa noite eterna.
O choro nunca mais abandonou o Senhor A., mas agora, passados tantos anos e não percebendo já ao certo por que chora, só espoleta perante coisas muito raras, por exemplo, uma borboleta a voar em contraluz, um som indecifrável à beira-mar, um perfume misterioso que o vento traz de longe, o sabor de um vinho perfeito, o toque casual de uma mão desconhecida na agitação da cidade, uma pedra solta na calçada, e também dentro de alguns sonhos, imediatamente antes de se tornarem pesadelos.