Os últimos 15 dias de vida coletiva regional encheram-se de novas sombras e escuridão, num cenário de pré-eleições antecipadas onde os endemismos da política doméstica não dão tréguas. Arrastam tudo e todos para a lama. Os que acordam com energia e disponíveis para o trabalho em prol da comunidade. Os que não dormem a pensar na próxima trama para deitar tudo a perder. Os que idealizam durante a noite esquemas ardilosos para viverem à sombra do esforço coletivo.
Há ainda os desavergonhados a esbanjar, os ambiciosos na ganância, os arrogantes no desprezo e os traiçoeiros nas fraudes. Para todos eles, a Madeira está a saque.
O saque não é apenas financeiro, é igualmente político e já se estendeu às normas regimentais do próprio Parlamento Regional. Nestes tempos, em que os “arranjinhos” na política nos encorajam a uma reflexão mais focada, percebe-se que a tentação para os abusos de quem detém o poder, é uma das maiores depravações do sistema político.
Em “A República”, no diálogo com Sócrates, Trasímaco postulava a Justiça como “o interesse do mais forte”, e não teve pejo em afirmar que os governantes criam leis baseadas nos seus próprios interesses e punem aqueles que as desobedecem.
O que se passou nas últimas duas semanas na Assembleia Legislativa Regional encontra verosimilhança na Antiguidade socrática. Quando uma reunião plenária acabou, por proposta do PSD, a votar o adiamento da data-limite da Moção de Censura ao Governo de Miguel Albuquerque para, precisamente, um mês depois, quando o Regimento diz, taxativamente, que a discussão e votação terá de acontecer ao oitavo dia parlamentar, após a entrega do documento. Portanto, a discussão e votação deveria ter sido feita até 18 de novembro... mas não foi!
A teia urdida pelo PSD acabou por enlear o presidente do Parlamento que voltou a mostrar-se embevecido com o conforto do cadeirão da Presidência, deixando moribundo o compromisso com o dever de zelar pelas normas aprovadas pelos próprios deputados. Manteve-se submisso ao poder minoritário do PSD ao votar a favor de um adiamento que sabia não estar consagrado nas normas regimentais.
Mas a tramoia do PSD acabou por atingir os seus magnos objetivos, arrastando e pressionando os socialistas para um alçapão de onde dificilmente sairão ilesos. É custoso entender que tenham optado pelo adiamento da Moção para dar prioridade ao Orçamento da Região e, ao mesmo tempo, afirmem que não irão votar a favor do Orçamento. Se não aprovam o Orçamento, para quê adiar a queda de Albuquerque?
Enquanto PSD, CDS, PS e Chega se revezam em simulacros políticos, esmorece a esperança para os 70 mil madeirenses em risco de pobreza; para os milhares de madeirenses que desesperam por uma consulta médica, exame ou cirurgia; para os jovens, a classe média e os trabalhadores, cada vez mais empobrecidos e sem ordenados que lhes permitam aceder a uma casa digna; para os agricultores cada vez mais abandonados.
A literatura ajuda-nos a sair da escuridão e a encontrar luz onde há sombras. A política regional teria muito a ganhar se alguns dos seus intérpretes substituíssem o trivial pela substância, a fraude pela integridade.
Quando alguém que vivenciou os horrores do pensamento único e da perseguição nazista como Hannah Arendt nos ensina que “a vida sem pensamento” é uma “vida sem essência”, conquanto quem “abdica do pensamento crítico engole abusos”. A caminho de meio século da Autonomia e da Democracia, é tempo de crescer, de elevar, de acabar com esta síndrome Peter Pan na política regional.