O miúdo segurava o mapa-múndi desajeitadamente, porque era muito grande e ele muito pequeno, ou melhor, cada um era mais ou menos do tamanho do outro, o mapa-múndi e o miúdo, e o avô ficou a olhar para ambos como se os visse pela primeira vez, o miúdo e o mapa-múndi, e depois disse:

– O Mundo é muito mais do que isso.

O miúdo ficou espantado.

– Mais do que isto?!

– Sim – disse o avô. – O Mundo é muito mais colorido e todos os dias os homens inventam novas cores. Algumas são muito bonitas, mas outras são tão feias, tão feias, mas tão feias que temos de desviar os olhos para não nos ferirem.

O miúdo baixou o mapa-múndi, que tinha erguido até à altura dos olhos, e ficou pensativo. Depois, perguntou:

– Quais são as cores feias?

Desta vez, foi o avô que ficou pensativo, mas não muito tempo.

– A cor da guerra, a cor da injustiça, a cor da mentira, a cor do dinheiro, a cor da inveja, a cor do ciúme, a cor da indiferença... Na verdade, os homens estão sempre a reinventar estas cores para pintar o Mundo de novo.

Ao ouvir isto, o miúdo sentiu duas coisas ao mesmo tempo: confusão, porque não entendia bem o significado das palavras, e medo, porque todas lhe pareceram monstros de boca aberta e, de repente, lembrou-se de um sonho em que estava a cair num abismo sem fim, para lá da linha do horizonte, e com ele caíam barcos e peixes e depois começaram a cair também pessoas, casas e aviões e fora um sonho preto, terrível, de modo que, para se salvar, perguntou:

– Quais são as cores bonitas?

O avô respondeu logo:

– As cores do sol e da lua, as cores do mar, das árvores e das montanhas, as cores do trabalho e das artes, as cores da festa e dos apertos de mão, as cores do amor e do bom dia, como está? (o avô estendeu-lhe a mão e ele reagiu estendendo-lhe a sua), as cores do sonho, das aventuras, da esperança, as cores da viagem...

O avô ia dizer mais qualquer coisa, mas o miúdo interrompeu-o:

– O preto é uma cor má?

O velho retorquiu:

– Se o preto fosse uma cor má, a noite em que dormes e sonhas não seria boa.

O miúdo percebeu que tinha a boca aberta, pois quis falar e não conseguiu. Então, molhou os lábios com a ponta da língua, engoliu a saliva e disse, muito determinado:

– Eu quero conhecer o Mundo.

O velho respondeu:

– Fazes isso todos os dias.

– Como assim, avô?

– Vais à escola e aprendes tantas coisas, falas com a professora e com os colegas e brincas no recreio com eles. Em casa, os teus pais ensinam-te a viver e quando vens cá descobres coisas impressionantes na fazenda e nos quartos, como esse mapa-múndi. Depois, ouves os vizinhos contar histórias e algumas até metem medo, vais à mercearia e falas com o senhor João, que é boa pessoa, sempre calmo e atencioso, e também entras em guerras com os teus amigos, não é verdade? E quando estás sozinho a tua cabeça leva-te para sítios muito distantes, tão distantes que até parece que não existem.

O velho pegou no mapa-múndi. Olhou-o com atenção. Depois, indicou um pontinho escuro num canto do oceano Atlântico, perto do imenso continente africano, e disse:

– Tu estás aqui.

O miúdo ausentou-se em espírito, perdido numa floresta mágica, e no regresso perguntou:

– Como é andar de avião?

O avô semicerrou os olhos e veio-lhe à memória a trágica morte do irmão mais velho, ocorrida há mais de sessenta anos, em 1958, quando um hidroavião que fazia a ligação Lisboa-Funchal se despenhou a 180 milhas do Cabo de São Vicente. Morreram todos os ocupantes. O irmão mais velho era um deles e deixou-o sozinho para sempre. Por isso, encolheu os ombros, como se fosse um miúdo, e disse toda a verdade sobre o Mundo, a única verdade:

– Não sei.