No meu último texto publicado neste espaço — que poderá encontrar em: https://www.jm-madeira.pt/cronicas/ver/1312/Matrioskas_somos_nos —, falei de várias formas de encarar o envelhecimento, deixando em evidência o seu lado positivo. Contudo, não podemos ignorar o reverso da questão, e é dele que hoje falo.
(…) Mas nem sempre a festa da vida é boa. Quando a dor nos assalta, tomando-nos a vontade; quando se nos tolhem os passos e o chão a percorrer se alonga incerto; quando não arriscamos ir com medo de não saber regressar; quando o mundo se torna tão diferente e tão despovoado daqueles com quem nos habituámos a viver, porque partiram ou, porque, estando perto, estão, o que é legítimo, ocupados com a sua própria vida, deixando-nos a solidão por companhia, então, a festa deixa de o ser.
E se as ideias se confundem e, quando as tentamos organizar, nos faltam pedaços de memória, é como se da matrioska que somos fossem progressivamente sumindo as réplicas, deixando-a oca de sentidos, reduzida à grande avó exterior, quase vazia; uma casca de matrioska velha, apegada à sua mais ínfima reminiscência de infância — um fio ténue, apenas, que a sustem de abdicar de si, no percurso de simplificação até ao ponto onde o princípio se funde com fim. Quando nos tornamos em estorvo desorientado e indesejável, quem nos pode então valer?
Com os avanços da ciência, da medicina, da tecnologia e das melhorias sociais, cada vez mais, a vida do ser humano se prolonga, permitindo-nos desfrutar dela por mais tempo. Regozijamo-nos por isso e, tanto quanto possível, esforçamo-nos por contradizer os sintomas de velhice. Contudo, todos sabemos que se a longevidade é excelente, ela traz também problemas complexos acoplados, quer para quem necessita de ajuda, quer para quem a presta. A sociedade só muito lentamente se vai preparando para esta realidade e continua a contar, em especial, com a abnegação das mulheres, para tratar dos doentes e dos incapacitados da família. Sem ter em consideração que isso tantas vezes implica a renúncia às suas próprias vidas, pois, conforme o grau de dependência, um ancião enfermo poderá exigir um acompanhamento quase constante e um esforço físico e psíquico que a sociedade não valoriza.
Faltam-nos estruturas sociais que apoiem os cuidadores domésticos. As que existem são incipientes, exigem um sem fim de burocracias e, se tudo for, por fim, aprovado, demora ainda uma eternidade até que as ajudas se efetivem no terreno. Quando o internamento se impõe, faltam os espaços condignos onde os dependentes possam receber cuidados adequados, dos quais façam parte atenção, disponibilidade empática e, se possível, algum carinho. Os poucos lares de idosos que existem estão sobrelotados de utentes e carentes de funcionários devidamente formados que lhes possam valer. E nem muitos daqueles que cobram grandes verbas mensais escapam a esta situação. Mantendo um magro quadro permanente de enfermeiros e de outros técnicos de saúde, baseiam-se no recurso a profissionais que acumulam horas de trabalho em hospitais, privados e públicos, faltando-lhes, como é natural, energia e disposição para este serviço extra, exigente e difícil.