Nasci no Lobito no ano de 1963, em plena Guerra do Ultramar, Colonial, de Libertação, o que lhe quiserem chamar, existe apenas um denominador comum, a Guerra.
A nossa casa era gigantesca com vários empregados africanos que trabalhavam a terra, na casa, nos engenhos. Até onde a vista conseguia alcançar, o chão era nosso, nosso e das canas-de-açúcar que lá enterravam as suas raízes. Até onde os sentidos conseguiam alcançar dançavam as folhas ásperas e cortantes das canas-de-açúcar. Algumas enfeitavam as suas copas com plumas que, em dias de ar mais agitado, libertavam fragmentos etéreos que refletiam a luz do sol. Era a nossa terra, a qual chamavam "machemba". Também tínhamos carros de trabalho e de passeio.
Embora a Guerra tivesse começado há alguns anos, a nossa propriedade não tinha, ainda, sido afetada. Os movimentos de revolta começaram no interior, no norte e leste da Colónia Angolana. Nós estávamos, ainda, poupados à fúria dos grupos de guerrilha que, sequiosos por uma liberdade que nem os próprios percebiam bem, toldados por propaganda e promessas que nunca chegaram, invadidos do sentimento de vingança de séculos de história rebaixados e humilhados, roubados da sua identidade, da sua língua, das suas crenças invadiram outras "machembas" de olhos abertos, órbitas raiadas, pupilas dilatadas.
De olhos bem abertos não viam nada. O desejo duma vingança cravada no sangue e na memória não os deixava distinguir o certo do errado, o preto do branco.
Por três vezes recebemos a notícias de amigos nossos que pereceram às mãos de guerrilheiros africanos.
Segunda-feira, três da tarde de um verão quente de 1970. Aproveitando a morna da sesta aninhei-me ao lado de Leão, o cão de porte médio, cor castanha, bafo apodrecido do tempo. O calor da terra envolvia-me o corpo, enquanto a sombra da árvore onde me encostava tornava o momento suportável e até, agradável.
O dia corria lento e pastoso. Jamila, a governanta, passou pelo canavial roçando as ancas largas nas folhas ásperas com um alguidar de mangas e pitangas para o lanche que serviria dentro de pouco tempo. Era feliz e sabia. Eram os momentos em que até Deus pestanejava e, se distraído, bocejava.
Nada faria prever o que aquele toque estridente do telefone faria àquele quadro bucólico africano.
Do interior, mais propriamente da cidade de Moxico, uma voz desesperada perguntava pelo meu pai. O seu nome era Artur e a sua terra na Metrópole: Santarém. A minha mãe chamava-se Maria da Luz e vinha da ilha da Madeira. (Continua)