Meu pai estava no armazém com Felismino, o gaiato que o seguia para todo o lado em troca de 20 escudos. Gritei, de longe, com os pés descalços por ele que não tardou em me dar um ralhete por ver meus tarsos e metatarsos mais próximos da crosta terrestre do que ele permitia. A sua atenção foi tocada quando percebeu que não ligara à sua repreensão. O assunto devia ser grave. Devia, pois nem eu sabia.
- Padre Carlos, a sua bênção, como está?
Foram as únicas palavras que consegui distinguir da boca do meu pai. Após, só silêncio, seguido de um gemido, seguido dum murmúrio, seguido de um grito horrendo que lhe saía das entranhas como o bramir de um elefante. Aquele grito, como que saído das profundezas mais obscuras da lama, angustiou-me. A seus pés minha mãe chorava desconsolada. Não percebia, não conseguia perceber. Os meus pés descalços ainda há pouco no chão quente, estavam gelados, duvido que ainda tocassem o chão.
Jamila levou-me dali, Leão latia, como que sabendo.
O tio Tomás, a sua mulher e os meus três primos. Os seus empregados. Os seus animais de estimação, todos mortos, todos arrancados à vida de forma atroz, estropiados, e expostos no alpendre como troféus.
Acontecia cada vez mais, não era a primeira vez, mas desta tinha chegado ao nosso sangue, tinha chegado a casa.
Passaram-se semanas, o meu pai perdera a alegria de viver. O chão arrefeceu, a árvore já não protegia, o chão já não aquecia. Meu pai queria regressar à Metrópole, mas para o quê? Ali já não havia nada, o seu pai morrera há uns anos e a sua mãe vivia connosco desde então. Na Metrópole um gigante nada os esperava.
Como mulher dedicada e abnegada que era a minha mãe, a que agora tentava fazer jus ao nome iluminando o caminho escuro da existência familiar, seguindo a vida com a maior normalidade possível, se possível. Melhor a certeza do incerto que a certeza do nada.
Ali fomos ficando. Com dias quentes e moles, com dias em que quase se esquecia a imagem dantesca do tio Carlos e dos meus três primos, entre os dezasseis e os sete anos de idade, inertes, como troféus dum torneio de horror mergulhado no vermelho do sangue fervendo na terra.
Por vezes íamos à praia, não era tão longe assim, mas certamente se afastava ao som das chaimites e das armas que cada vez mais se aproximavam.