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Artigo de Opinião

GATEIRA PARA A DIÁSPORA

15/03/2022 08:00

Quatro dias antes do começo da guerra e no último dia da exposição, em Estrasburgo, La Marseillaise - o hino francês - fomos ver um projecto de dança de jovens dançarinos com o coreógrafo David Llari. No último «pas de danse», uma das dançarinas conseguiu, a custo, refrear o ímpeto do seu corpo para que não se precipitasse e pudessem todos avançar em bloco como naquela massa de gente anónima que, nos quadros e nas esculturas espalhados pela França e pelo mundo, avança como um monólito carregando aos ombros a liberdade - só assim alada -, e, por conseguinte, uma ideia de pátria. O corajoso, e sofrido, povo ucraniano também carrega uma ideia de pátria, onde quer que esteja e independentemente da maneira como está a defender - por exemplo, com um vestido de gala e tocando violino num abrigo em Kharkiv - a «nossa Ucrânia», como lhe chamam.

No entretanto, começou a guerra e inflectiu-se a verdade: as sirenes, as explosões, os carros de combate, os deslocados internos e os refugiados em devir, as armas, os camuflados, as insígnias e a falta delas, os olhares baços, a vida - e a morte - num saco.

No segundo dia da guerra, ouvi o jornalista da BBC intercalar o seu relato com «Sarah, stay inside» (Sara, fica dentro) e «Oh, babe» (Ó, querida) pois a vida e o amor, ao contrário da guerra, não devem esperar. No quarto dia da guerra, leio que o maior avião do mundo, o Antonov AN-225, Mriya (sonho) fora destruído num ataque russo, mas sabemos que os sonhos não se destroem com bombas. No mesmo dia, vejo nas notícias um pai a despedir-se da filha e a dizer-lhe «Sê corajosa. Porta-te bem. Sê boa». Limpa-lhe as lágrimas e dá-lhe um abraço. Svetlana Alexievitch, no seu livro As Últimas Testemunhas - que reúne histórias, a partir de relatos na primeira pessoa, de homens e mulheres várias décadas depois de a Segunda Guerra Mundial lhes ter roubado a infância - começa por relembrar que Dostoiévski dizia que nenhum progresso, nenhuma revolução, nenhuma guerra podem justificar uma lágrima vertida por uma criança. Essa lágrima terá sempre mais peso. Nesse mesmo livro, Larissa, com então seis anos, conta que quando falavam sobre o pai ao seu irmão mais novo ele ponha-se a chorar por ainda não existir quando tinham um pai.

No quinto dia da guerra, ouço o escritor russo Dimitri Bortnikov, que depois que a sua mãe morreu escreve em francês. Ele diz que um pai não pode ensinar nada a um filho a não ser amar. «Ama o que amares, mas não ames com vergonha.» Na televisão, volto a ouvir uma rapariga a dizer «I have no words in my mouth». Também não tenho palavras na minha boca, a boca está seca de palavras e de outras coisas. Outra rapariga diz que ela viu «the horrible», o que é horrível, o que não se pode nomear pois desafia a nossa compreensão, talvez porque não a tenha ou porque tendo, nega o que somos.

No nono dia da guerra, Zelensky discursou, à distância, perante o Parlamento Europeu. Os intérpretes nem sempre conseguiram conter a emoção. A guerra nega a interpretação pois através desta última duas ou mais pessoas que não se entenderiam passam a fazê-lo.

No décimo quarto dia de guerra, um ataque aéreo russo atingiu uma maternidade em Mariupol. O que escrever?

Em diferentes dias, vejo autocarros e carros com um papel onde se pode ler «gente» e «crianças». São corredores para a nossa humanidade.

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