Não havia margem para ser de qualquer maneira. O magusto tinha de ser feito com rigor: As melhores castanhas separadas antes das chuvas fazerem estrago e a saruga farta, para lhe fazer de coberta dentro de um imaculado círculo de pedras. Era um regalo para os olhos o ritual da preparação. O avô Adelino era calado, mas meticuloso. Não havia tarefa que não desempenhasse com o brio de pintor perante a tela e a elegância de um bailarino em frente do seu público.
E por isso, tinha sempre a lenha cortada com fio de prumo e alinhada como um puzzle da natureza. Deixava-nos assolados de espanto e admiração, com os movimentos sincronizados do machado a cortar a madeira de árvores todas diferentes e que se tornavam cavacas iguais, depois de passarem pelos seus braços robustos. Tinha músculos a fazer lembrar os dos atores de filmes de ação, mas era também um poeta que fazia das tarefas mais ordinárias um soneto de rimas emparelhadas. Até na hora de desfiar o último golpe nas dezenas de porcos que sucumbiram às suas mãos, e que eram fonte de alimentação por um ano de famílias inteiras, fazia com a precisão de cirurgião e a implacabilidade só possível aos homens bons, justos e compassivos. Nenhum sofreria mais do que o necessário, nem que fosse preciso retirar público do auditório em que se transformavam os quintais onde ensaiava o seu passe de mágica. E na hora da desmancha, o mesmo sentido estético no corte das peças e no aproveitamento de todas as partes do animal, sempre com a lembrança da fome que lhe marcara a infância, numa casa farta em irmãos, mas parca de bens materiais.
Não se queixava e só a custo ia desfiando a sua história que começou junto ao calhau e acabou mais para a serra. Como aquelas vezes em que o peixe abundava em casa, quando o pai atirava bombas já na altura proibidas e o pescado vinha à tona e à mesa. Uma vez foi detido, esteve dias sem retornar a casa e serviu de emenda, contava, sorriso nos lábios e brilho nos olhos. "Ah tempo, tempo", rematava a conversa como quem enxota o passado. Não era homem de viver no ontem, era terra a terra, rego a rego, no presente que gostava de encarar com método. Não podia ser de qualquer maneira e não havia magusto como o dele. O corte era simétrico e repetido como numa fábrica. E no fim, quando a chama se extinguia, o seu rosto iluminava-se quando retirava os restos de carvão e as castanhas se apresentavam orgulhosamente sobreviventes da fogueira onde tinham estado. E a felicidade de nos deixar, finalmente, sujar as mãos, alertando para não nos queimarmos ao saborearmos aquela delícia era o último ato, numa peça onde era encenador e ator principal, mesmo sem querer. Com poucas falas, de quem nunca aprendeu a ler, mas escreveu um lindo livro da vida. "Ah tempo, tempo".