A pandemia pôs a nu a evidência de cuidarmos do outro. Daquele que está na nossa casa, que está no local onde trabalhamos, que vive na nossa cidade ou que está institucionalizado. O cuidado não escolhe lugar nem momento, não precisa de ser solicitado e nem sequer exige a aquiescência de quem cuidamos.
A sociedade do cuidado confronta o individualismo, a crença de que só interessa a autossuficiência.
Neste novo desafio para a humanidade e para a nossa comunidade, a maioria dos deputados da Republica, antes da sua anunciada despedida, retiraram da gaveta a nova versão da proposta que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível. Depois do veto à primeira versão, eivada de inconstitucionalidades e antes de se remeterem à condição de ex-deputados como lhes está destinado, mal copiaram de Espanha (artigo 3º da Ley 3/2021 de 24 de março) e cozinharam uma adenda escondida que só subiu a plenário no dia 3 de novembro, para ser votado dois dias depois.
Precavendo-se, não fosse a maioria mudar e a iniciativa cair de forma inevitável definitivamente, quiseram deixar a eutanásia legalizada, abreviando a morte de quem está em sofrimento intolerável (quando os cuidados paliativos escasseiam) com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável e fatal.
Quem ler os aditados artigos reconhece que se mantém conceitos vagos e subjetivos - a intensidade do sofrimento, a extrema gravidade de uma lesão, vontade pessoal, séria livre e esclarecida (em particular de uma pessoa limitada e débil) - e imprecisões - ora fala-se em doença incurável ora em doença fatal - para além de um irrealismo face à atual situação da saúde publica. Os conceitos à volta desta "nova liberdade" são pouco precisos como irrealistas, de nada tendo servido os avisos do Tribunal Constitucional que originaram o veto à versão original.
A questão, porém, não é apenas técnico-jurídica. Sem desvalorizar o drama de convivermos com a chegada da morte e com a angústia de quem tem debilidades que afetam profundamente o seu viver, o papel do Estado é não desistir! Ouvimos tantas pessoas se queixarem de que não foi feito tudo o que se podia pelo familiar que partiu, ouvem-se lamentos de famílias que reclamam pela falta de cuidados ou de medicamentos que podiam curar ou aliviar o doente. Assistimos todos os dias à degradação de um serviço de saúde, exangue da pandemia e sem meios para cuidar das listas de espera, da prevenção na saúde e até dos cuidados paliativos.
Sobre tudo isso, a maioria dos deputados, neste seu estertor politico, e a bem de um pretenso progressismo, abre a porta a uma "autodeterminação individual", que mais não é do que um apelo a "arrumar na prateleira" os deveres de cuidado, procurando que a consciência coletiva se alivie num "sim", cheio de dores ou de desespero que ninguém assegura que foi cuidado e atendido.
A lei da eutanásia mais do que expressão de "vontade individual" é a desistência do Estado, é um virar de cara perante o horror da dor ou da morte. É a facilitação oferecida (se calhar estimulada) para que não haja "inutilidade" na ocupação de camas hospitalares ou gastos desnecessários em cuidados médicos.
O caminho precisa de ser arrepiado. A bem a nossa responsabilidade pelo outro. A bem de um Estado que não desiste.
A palavra é agora do Presidente da República.