O tempo. A dor de existir sem o dom da visão ou sem a rara unção das mãos que não sabem já fechar-se. Eis aqui a aparição permanente de um santo: "Nunca conheci terreno mais fértil do que as mãos juntas", o contraditório do terror da aproximação. Estou a envelhecer, muito mais do que no princípio; talvez um pouco menos do que no fim, quem sabe. Acordo sem o movimento do mar que antes vinha à minha têmpora esquerda, acordo para morrer e, porém, ainda me levanto. Torno a deitar-me sobre os pés como se a estrada viesse, devagar, abrir a contagem dos ossos. Um mais um. Um menos todos. Paraliso sobre a carne, arrefeço sem o mar onde já não entro, sem o mar que deixou de entrar para se tornar água parada. Vou então morrendo como quem vive, uma mãe morta a quem roubaram os grandes perigos, restando-lhe apenas isto, um dedo frio sobre os lábios temerosos do filho. Mas como hei-de dizer, enfim, a palavra filho, ou a palavra boca, ou, assim, a palavra mãe? Como, se me afasto, se me afastam os ossos da carne e eu não apareci, ainda, morta. Como? Acabou, acabou-se a aparição, hei-de fumar um cigarro vivo sobre o lado mais frio do corpo, e hei-de rir-me da poalha de todos os ossos que sucumbiram às ordens e ao medo. Serei um peixe maior do que a rede, a minha boca ressuscitará do fundo da terra pesada e os meus joelhos exibirão as feridas dos segundos homens exaustos que ninguém confessa.
Consegues sentir o vento que, aos poucos, me vai aquecendo o corpo? Terás a coragem de juntar as mãos não corrompidas pela pureza? Quão longe vão as tuas mãos? Saberás tu da leveza dos dedos de uma mão? Peço-te, baixa o rosto uma única vez, para que eu possa beber dos teus olhos uma última verdade, antes que a cegueira entre e não possamos já, como antigamente, ir pelo desvio; antes que nos levem a incerteza do caminho, a beleza e a noite escura, antes que se livrem de todas as sombras e de todos os olhos. Estamos assim, tão feridos do tanto que nos querem.
E tu, de repente livras-me do bem?