É preciso que o mar comece onde a minha boca se aproxima da tua mão. Um declive tão desejado no dia do meu nascimento, essa hora mais clara em que a noite veio sobre mim, cobrindo-me com o seu hábito de mãe incandescente. É preciso que o mar comece ainda antes do silêncio e da escada que ergo até à tua cabeça. Belíssima e terna, hoje, dia em que me inclino sobre a árvore dos teus olhos, lugar onde procuro sempre a tua escuridão e onde me escondo dos olhos dos vivos.
O meu corpo deixou de ter as apoquentações de antes, está mais ínfimo do que a minha paixão, mas há, aqui mesmo, onde me vês, um sol a nascer de uma vértebra incompleta. E esse sol há-de nascer, certamente, da mó de uma palavra prolongada sobre o pulso. Antes que o mar comece.
Domingo é um bom dia para cair; tão bom como para estremecer do verbo mais impronunciável, ou entrar para sempre no sangue de um único nome, e ser, então, a raiz profunda que acolhe o grito. Ao Domingo o corpo morre para que Deus descanse do seu não-corpo, para que refaça a ferida untando os dedos do calor dos mortos.
Como noutro dia qualquer, ao Domingo não haverá milagres.
Creio, porém, na mão iniciada pelo mar, no espaço que o vento percorre até ao silêncio perdido para a flor. Talvez seja preciso que a fé termine onde começa um corpo, ainda que a vértebra se quebre quando incompleta e o sol se torne um frio rumor voltado para o veludo de um muro.
Se o mar puder começar por cima da casa que já ruiu, da mão que afasta o suor do rosto do velho, cumprindo o desejo em vez da ternura, então Domingo resistirá ao estrondo dos dias, à sua claridade soprada de uma medula desconhecida.
Daqui, estendo o meu braço e quase consigo alcançar esse presente absoluto, palpar-lhe, pela plumagem, as pequenas falhas desumanas. Encanto-me da palavra levantada de uma sombra líquida, breve como a criança que nos nasce.
Ao Domingo, é preciso entrar no mar antes que o mar comece; antes que Deus descanse sobre os que morrem.