É verdade que na ilha as festas se prolongavam ao limite do razoável. Cantava-se ‘os reis’, ia-se ao Santo Amaro e varria-se os armários. Tudo era pretexto para manter o espírito natalício pelo Ano Novo fora, mas havia sempre o dia em que as luzes se apagavam e era como se alguma coisa se desligasse dentro de nós também.
Primeiro eram as gambiarras de casa, que se arrumavam com jeito para não queimar, as bugigangas desirmanadas que se metiam ano após ano na árvore - um sino, uma fita já meio descompensada de um dos lados, uma bola verde, outra doirada, um anjinho com uma asa de lado e um postal que uma irmã tinha mandado da África do Sul uns anos antes a desejar Festas Felizes- atiradas para o caixote do costume, à espera de voltar para o sótão até ser dezembro outra vez. Depois era o pinheiro com a folhagem já amarela a ser desmantelado para lenha ou outro fim menos honroso. As searinhas, mesmo após uma poda, a acusar a falta de espaço e a tombar de cansaço nos pequenos vasinhos onde tinham sido plantadas. As figuras do presépio, as mais preciosas deste tesouro, a serem enroladas em jornais e postas em descanso, com os sacos de farinha pintados com viochene dobrados em cima, com cuidado para não rasgar.
Era o tempo mais melancólico do ano, mas era na cidade que a mudança nos atingia com mais violência. Quando as coloridas luzes das árvores da Avenida do Infante se apagavam, voltando às cores de todos os dias, era uma verdadeira dor na alma. Era como um chamamento sonoro e doloroso para a vida de todos os dias, onde a roupa, há pouco tempo nova, já tinha um mês de uso e agora era preciso esperar até as festas do verão para voltar aos Armazéns do Carmo e sentir aquela sensação outra vez.
Já ninguém desejava Bom Ano e o ano já não era a estrear, mesmo sem ser velho. Na verdade, a partir dessa altura já os adultos se tinham resignado a que o ano ia ser como tivesse de ser, o mais certo era ser igual aos anteriores, mais coisa menos coisa. Os pequenos tendiam a andar mais aborrecidos, com a chuva ou vento ou até com os dias pequenos, que roubavam horas à brincadeira fora de portas. Os brinquedos recebidos já estavam sem pilhas ou partidos por esses dias, ou, talvez, só perdessem o encanto. No fundo, era a esperança que se apagava quando se desligavam as luzes em casa, na cidade e dentro de nós.
Sandra Cardoso escreve ao domingo, de 2 em 2 semanas