O vírus da covid-19 alterou rotinas e veio abrir uma janela para realidades com que sempre convivemos, mas para as quais a sociedade, de um modo geral, não olhava. São várias. Contudo, vou ater-me àquelas que se relacionam com a escola, o meio que melhor conheço.
Durante anos, assisti à indiferença ou mesmo aversão pela escola, como se frequentá-la fosse uma imposição que massacrava os jovens com tarefas, sob a orientação — ou exigências, consideram alguns — de professores, por vezes acusados de ensinar mal e trabalhar pouco. A escola parecia algo dispensável e quem lá trabalhava desvalorizado e desconsiderado. Com as restrições que a pandemia impôs, ficou evidente que a escola é fundamental, não só para ensinar — e ensinar não significa apenas dar a conhecer as letras, os números, as ciências, etc., mas também ajudar a crescer, a pensar, a criar, a motivar para a descoberta; a saber estar, a conviver, a partilhar com outros, enfim, aprender a saber e a ser. Um papel assumido quem trabalha numa comunidade educativa.
Com aulas à distância, sobressaiu a ausência dessas dimensões do ensino. Mas há outros aspectos, ainda mais básicos para a sobrevivência humana que se tornaram preocupação visível: meninos que perderam a refeição que tomavam na escola, por lhes faltarem condições para a terem em casa; meninos que vivem em casas miseráveis, onde a chuva e o frio entram sem pedir licença e que, indo à escola, repousavam desta precariedade enquanto lá estavam. Nesta janela que a pandemia abriu para a pobreza, vimos outra miséria ignóbil: a dos meninos abusados e molestados sexualmente por familiares com quem coabitam; famílias onde o egoísmo, o álcool, a droga e a violência comoram também. Enquanto iam à escola, escapavam dessa realidade — pelo menos fisicamente, porque imagino ser difícil alguém se abstrair de tais experiências e focar-se nos estudos. Até quando teremos este flagelo? Será que a pandemia nos abrirá os olhos para este perpetuar da tolerância às adições e à violência?
Com o ensino à distância descobriu-se que, afinal, nem todos os jovens são craques no uso das novas tecnologias e que estas não estão acessíveis a todos, ou por falta de dinheiro para as pagar ou por viverem em zonas sem cobertura de redes que as permitam funcionar. E não são só os meninos. A sociedade também deu conta que nem todos os professores estão apetrechados de computadores, auriculares e câmaras que lhes permitam dar as aulas a partir de casa. Imagino que muitos se apressaram a fazer esse investimento para poderem cumprir; para não deixarem os seus alunos ficar para trás. Afirmo-o sem grandes dúvidas porque sei o que move a alma de um professor. Aliás, este tipo de atitude era já useira. Só que ninguém dava conta dela. Mesmo exercendo na escola, quantos professores se sentiram pressionados a retirar do seu salário o necessário para tornar as aulas mais aliciantes? Ao longo dos tempos, foram os leitores de cassetes, os de CD, os acetatos, os computadores, os projetores … sempre a correr para acompanhar a evolução, e porque os materiais que a escola oferecia eram escassos, pelo muito uso que tinham, avariavam amiúde e tarde ou nunca eram reparados, porque escasseava a verba para tal. Períodos houve em que qualquer folha de papel, para além das necessárias aos testes de avaliação, era paga do bolso do docente e algumas vezes também cobrada aos alunos.
A pandemia abriu a janela para realidades que se escondiam por detrás da felicidade consumista em que vivíamos. Oxalá não voltemos a fechar a janela, esquecendo o lixo por debaixo do tapete e consigamos, sim, aproveitar o momento para ajudar os meninos a ter uma casa condigna; dedicar mais verbas à educação; reconhecer a importância da escola e ir para ela com entusiasmo, encarando-a como forma de alicerçar o sucesso pessoal, nas suas várias dimensões e convencer jovens e adultos que a violência é sempre reprovável.