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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

2/04/2023 04:30

Na Páscoa trazia sempre torrões de açúcar, que a mãe garantia que nos iam fazer cair os dentes. Palavra de mãe era sagrada, tanto que quando começaram a abanar os dentes de leite da mais nova foi uma cena digna dos melhores palcos. Tiveram a certeza de que só podia ser daquela doçaria que foram advertidas para evitar e, portanto, o melhor era assumirem as culpas. Uma choradeira da parte da mais nova com o sangue a escorrer pela boca, as lágrimas a lavar a cara e o dente posto em descanso na mãozinha pequena, cheia de baba ensanguentada. "Foi dos torrões da Páscoa", lamentou-se a mais velha, que não conseguia aguentar o peso da culpa, naquela época quaresmal. A verdade é que nada fizera para demover a mais nova do pecado da gula e era suposto ter outra responsabilidade, pelo menos era o que lhe diziam, mas raramente estava à altura.

Não havia quem as consolasse e a mãe lá teve de dar o dito por não dito e garantir que a jovial dentição tinha mesmo de cair para dar lugar a outra. A pequena ficou com um buraco negro na boca, parecia o velho do saco de quem fugiam a sete pés. O saco era na verdade uma saca de serrapilheira, onde transportava as coisas quando ia dar dias fora, mas havia quem assegurasse que levava todos os meninos desobedientes e por isso a canalha fugia dele a sete pés. Tinha a tez encardida da terra e a corcunda pesava-lhe no corpo. Arrastava as botas e os olhos tristes escondiam-se por baixo do cabelo e da barba descuidados.

O avô da cidade era o oposto. Tinha a pele branca como os estrangeiros e os olhos clarinhos como o céu. Sozinho na sua viuvez precoce, diziam que parecia o Papa João Paulo II. Vinha no Horário passar alguns fins-de-semana ao campo, que era onde viviam. Na Páscoa trazia torrões e amêndoas que cheiravam e sabiam a mofo. Dava a ideia de que as guardava de um ano para outro. Às vezes trazia livros e foi assim que leram um compêndio de literatura de cordel, completamente imprópria para a idade. Era diferente dos outros homens da aldeia daquela idade. Demasiado novo para morrer, demasiado velho para viver. Então dormitava, como se levitasse. Sem pressa, na poltrona ou na cadeira. Às vezes tirávamos-lhe a boina, outras fazíamos cócegas com uma pena ou dente-de-leão. Estremunhava-se, impacientemente paciente. Que estivéssemos quietas. Raramente estávamos, porque tínhamos urgência, ao contrário dele que não tinha pressa nem para deixar saudades.

Sandra Cardoso escreve ao domingo, de 2 em 2 semanas

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