Apesar de o mar se perder na vista e no horizonte, o calhau estava longe de ser coisa de todos os dias. Visto do cume do monte, dia após dia daqueles verões intermináveis, o mar era fruto quase proibido e, por isso, mais do que apetecido.
A vida do campo não se compadecia com o calendário escolar e o verão não dava tréguas, entre água de giro, feijão para descascar, tomate para dar vazão em doce e massa de tomate, uma versão biológica de polpa, que se metia em frascos de café reciclados para dar cor, sabor e calor ao comer do inverno. Semilhas, rama para passar, cebolinho para tirar semente e, mais para o fim de agosto, a vindima para fazer.
Havia ainda a obra de vime, que encardia as mãos, e pouco ajudava no que toca a reforço da economia familiar, mas entre pouco e coisa nenhuma lá nos garantiam os adultos que de grão em grão enchia a galinha o papo, que o comer não cai do céu e que trabalho de menino é pouco, mas quem o não quer é louco. Ficava para as horas de calor em que não se podia estar em lado nenhum e então, debaixo da sombra das parreiras ou de um maracujazeiro, lá se iam entrelaçando vimes e liaça em formas e forminhas de cestos para venda no mercado e no Café Relógio.
Era preciso, pois, cada um fazer a sua parte e o mar ficava a fintar, lampeiro, da linha do horizonte, pintalgado com barcos grandes que vinham de longe, cheios de gente que falava estrangeiro, de lugares que nem sonhávamos existir e que, quando desembarcavam, andavam a pé para todo o lado contemplando-nos com estranheza e curiosidade como se nunca tivessem visto canalha encardida de trabalhar, brincar e comer na terra. Havia fruta a rodos, que muitas vezes nem deixávamos luzir e já estávamos a trincar. Não era preciso hora para lanche, quando havia um mercado à disposição permanente, menos das árvores do vizinho mal-encarado, que anunciava, num cartão mal-amanhado com uma caveira desenhada, que a fruta tinha veneno. Demovia alguns, outros mais destemidos nem por isso.
Todos os dias o barco do Porto Santo passava para lá e para cá. De manhã e à noite. Era mais pequeno que os gigantes que aparecia sem hora marcada. E a mãe dizia: Deus me livre e contava histórias de viagens que pareciam pior que passar o Bojador. Era um sonho poder ir de férias para a ilha ao lado, mas nem sempre era possível, só nos anos melhorzinhos.
Era como o mar a cruzar a linha do horizonte, lampeiro, naqueles verões, intermináveis como só o são na juventude, e nós que só podíamos ir ao banho quando havia um bocadinho de tempo e se descansava dos afazeres intermináveis da vida do campo. "Talvez no domingo", garantiam-nos. E até trabalhávamos com mais afinco, envergávamos milho como gente grande, descascávamos feijão, favas e o que mais houvesse e sonhávamos com tardes passadas no calhau, sandes de omelete da mãe e mergulhos num mar que, estando perto, parecia sempre muito longe, visto do cume do monte naqueles verões sem fim que, entretanto, terminaram.