Durante semanas olhava para aquele volume tapado em cima do guarda-fatos dos pais. O que esconderia aquela massa retangular que não tinha autorização de explorar? A mãe ordenou que não espreitassem que aquela proibição era para ser levada a sério, que saberiam sempre se alguém tivesse mexido no enigmático segredo embrulhado no velho cobertor de família.
A curiosidade era proporcional ao temor das desgraças que podiam vir ao mundo se não acatasse a ordem direta. Pensava no que Eva causara a Adão e à Humanidade inteira por não ter resistido ao fruto proibido, que soubera ali, na tenra idade, que era mesmo o mais apetecido. Era um fardo demasiado grande para os seus pequenos ombros. Mas e se fosse só espreitar? Ninguém notaria, não é propriamente como uma maçã mordida, pensava com os seus botões. Mas hesitava. Uma e outra vez. Imaginou mandar a irmã em seu lugar, sempre era mais nova e tinha para si que a mãe lhe perdoava tudo, mas que seria quando soubessem quem era a cabecilha daquele pequeno gangue familiar de prevaricadores da paz doméstica?
Desistia uma e outra vez e procurava ocupar o pensamento e o tempo com as brincadeiras de todos os dias. Longe da vista, longe do coração. Mas voltava sempre a bater com os olhos no misterioso e enigmático tesouro escondido. Ou seria uma maldição? Então voltava à estaca zero e pensava que tinha que cumprir com o seu destino, consciente do infortúnio que se seguiria. Era ir em frente, subir a cadeira ao fundo do quarto e levantar a ponta da manta. Não custava nada, pensava e claudicava uma e outra vez. Era como aqueles avisos nas árvores dos vizinhos a dizer para não comer fruta que tinha veneno. O primo mais velho assegurava que era um truque para que não devorassem as ameixas ou damascos alheios. Que não tinha medo nenhum, que já tinha comido vários, ignorando o sinal de perigo de uma caveira mal desenhada num cartão carcomido do sol e do vento. Mas ela não arriscava, até porque a mãe avisava para não comer fora de casa, sabendo ela que a fruta da vizinha é sempre melhor que a minha.
O pacote mal-escondido, da ansiedade e descontentamento, desapareceu tão misteriosamente como aparecera na véspera de Festa. Nesse ano recebeu uma boneca que tinha quase o seu tamanho, num ato de generosidade do Pai Natal, sem precedentes. Não se lembrou mais do volume escondido pela coberta, agora desaparecido, mas a mãe disse-lhe que não a poderia tirar da caixa, que se estragaria em três tempos. Lá ficou à vista de todos, elegante no seu vestido às bolas verdes, alvo de admiração de todos os miúdos da rua. "Tira-a da caixa", incentivam-na. Mas mais uma vez tinha de cumprir o seu destino e aquela boneca, a mais bela de todas, nunca foi para brincar. Teve saudades do que o cobertor escondia, afinal sabia agora também que coração que não vê, coração que não sente.