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Artigo de Opinião

HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA

15/10/2021 08:01

No ecrã, desfilam imagens do Afeganistão mostrando aglomerações de homens hirsutos que, não fossem as modernas armas que carregam, julgaríamos serem personagens de um filme sobre tempos remotos e angustiamo-nos com os relatos sobre a forma como as mulheres são destratadas naquele país. E vemo-las, apenas vultos negros sem rosto, algumas com os seus bebés adormecidos nos braços, sem suspeitar que aqueles braços não são, afinal, refúgio garantido, apenas porque são braços de mulher. Os homens, legitimados pela lei da religião, feita à medida dos seus desejos, desposam-nas ainda meninas, usam-nas, calam-lhes a voz, proíbem-lhes o riso, aniquilam-lhes a dignidade e condenam-nas à morte pública ou ao aprisionamento, sabe-se lá com quanto sofrimento ou resignação, dentro das suas próprias paredes. Dirigimos uma prece para que outro discernimento acorde naqueles opressores e suspiramos de alívio por habitarmos um contexto cultural distinto.

O noticiário muda o foco para a realidade nacional e dá conta da prisão de um homem pelo homicídio da ex-companheira cujas várias queixas às autoridades não conseguiram evitar o desfecho mais dramático. Outro, um amante enciumado, invadiu o local de trabalho da amada e desferiu-lhe uns quantos tiros, indiferente à presença das colegas e clientes que, atemorizadas e perplexas, assistem ao destempero. Sentia-se traído e no direito de lavar a sua honra. Um idoso ficou proibido de se aproximar da casa da mulher com quem estrategicamente se consorciara para poder abusar sexualmente da sua neta, de sete ou oito anos. — Ela provocava-o — disse ele. A avó da menina afirma-se disposta a perdoá-lo.

Podíamos pensar serem atitudes de gente inculta, criada sob perspetivas relacionais obsoletas. Logo vemos, porém, que não é assim. Uma jovem de vinte anos foi violentada e torturada pelo namorado, também ele jovem, que tudo filmou e enviou ao amigo que cria ser seu rival. Apesar das ameaças e chantagem, a rapariga teve lucidez e coragem para apresentar queixa, que desta vez, foi ouvida e o agressor condenado.

Neste caso, houve denúncia, mas, com frequência, ela é calada. Recordo, por exemplo, a história de uma mulher que viveu, décadas, acorrentada dentro de um barraco de tábuas ralas, no fundo do quintal, alimentada com restos e ossos, sujeita ao frio, ao calor e a satisfazer as fantasias do marido, homem cruel que se comprazia a fazê-la sofrer. Dizia a notícia, que, de vez em quando, a desacorrentava para que se vestisse a fim de irem ao restaurante. Ali chegados, deixava-a na rua, devidamente ameaçada, enquanto ele se refastelava com a refeição. Porque nunca gritou ela? Porque nunca pediu auxílio? Por medo, por descrença na proteção da sociedade e das suas instituições ou por anulação da própria identidade, como se vivesse tolhida dentro de uma burca invisível que a desumanizou?

Ponho-me a pensar que, apesar de não usarmos burca, podermos rir e andar na rua, há, entre nós, mulheres quase tão vítimas quanto as afegãs. Cá, como lá, a violência e o abuso são repugnantes. Porém, cá, como lá, há sempre quem forje uma razão para os justificar: o ciúme, a honra, a vingança, a paixão, a religião, a tradição, ou outra coisa qualquer. Quanto caminho precisaremos ainda percorrer até que o respeito pelo outro seja universal?

Para já, suspiramos de tristeza e dirigimos uma prece para que outro discernimento acorde, também entre nós.

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