A nossa guia também tinha um olhar doce, mas vivo, e as crianças, como os adultos, saíram de lá a saber mais coisas sobre a ópera e sobre a vida, e com uma grande vontade de ouvir a primeira e viver a segunda, ou vice-versa. Na estação do Luxemburgo, onde apanhei o comboio, habita um slameur [o Larousse define o slam como «poesia oral, urbana, declamada num lugar público, sobre um ritmo acentuado»]. Nesse dia, dizia que valíamos mais que isso [pagar rendas e quejandos] e o resto são as crianças.
Numa destas noites de Agosto, talvez embalado pelo querido mês de férias e pelas temperaturas caniculares que se fazem sentir, deitei-me tarde pois quis rever a Grande Entrevista de Vítor Gonçalves a Ana Luísa Amaral, que infelizmente nos deixara. De algum modo, essa entrevista aplacou em mim o seu próprio desaparecimento e também o desaparecimento da menina que atravessou a estrada durante a 17ª PEC do Rali Vinho da Madeira, conhecida como Rosário 2. O registo da imagem em que se via um objecto a escorrer sem destino pela estrada abaixo, surgindo depois o carro amolgado, encapsulava os passos da infância e a paixão daquele Rosário. Um outro caminho para a luz.
Gosto muito de ouvir na Antena 2 o programa de Ana Luísa Amaral e de Luís Caetano O Som que os Versos Fazem ao Abrir. Muitas vezes, ao Abrir fazem Abril e isso não é despiciendo. Num desses programas, falava de um poeta de quem muito gosta, António Ramos Rosa, e dizia que durante muitos anos trouxe um poema seu na carteira: «[p]ara um amigo tenho sempre um relógio/esquecido em qualquer fundo de algibeira.» Ela dizia-se orgulhosa de praticar o poema pois, sobretudo durante o seu doutoramento, se algum amigo lhe telefonasse para que se encontrassem dizia vamos lá. Ao dizer «vamos lá» a um amigo, sobretudo quando não temos tempo, praticamos o poema e ressuscitamos a vida.
Em Paris, e no contexto da Temporada Portugal França 2022, tive a oportunidade de ver a exposição Le reste est Ombre (O resto é a sombra [/De árvores alheias], título baseado num poema de Ricardo Reis) de Pedro Costa, Rui Chafes e Paulo Nozolino. Num percurso de sombras vivas, encontrávamos, por exemplo, os rostos suspensos e estáticos de habitantes do bairro das Fontainhas capturados por Costa, sublimados por As tuas mãos de Chafes (esculturas que se assimilariam aos gestos que fazemos ao falar, viravolteando as mãos). O metal, em Chafes, vergava-se por - e com - aqueles rostos e não por entre a bigorna e o martelo. Caminhos sinuosos da luz, como o do rosto do menino morto em Sarajevo (lembrando «Jaz morto, e [arrefece],/ O menino da sua mãe.»), de Nozolino, em diálogo com uma «placa funerária em quase levitação», intitulada Véu de Chafes.
Quanto a Angola, que não se enterre a paz. Seria um descaminho, sem luz.