Havia poucas opções para as mulheres lá da aldeia, mas trabalho havia muito, mesmo que a maioria fosse ao início do mês pagar a ‘casa do povo’, a entidade que recebia os pagamentos para a segurança social, e lá aparecesse apenas artesã ou trabalhadora agrícola.
Era o que lhes estava reservado. Ou bordavam, ou faziam cestos de vime ou andavam de sol a sol nas fazendas. Algumas acumulavam duas das três. Dificilmente se misturava a obra de vimes – era assim que se chamava e era obra mesmo - com os bordados e notava-se bem quem fazia o quê. As mãos gretadas e escuras da liaça e do vime, que se demolhava para se poder torcer, ou de quem andava na monda da rama denunciavam-nas ao longe. Já as bordadeiras e costureiras tinham as mãos alvas como a neve.
Partilhavam mais ou menos o mesmo destino, dependendo do homem que lhes calhasse na lotaria da vida. As opções sentimentais eram tão escassas como as profissionais e mesmo um noivo zeloso muitas vezes se tornava num marido bêbado com tudo o daí advém. Pouca sorte das raparigas.
Que criavam os filhos e às vezes os netos sem ajudas de creches ou jardins-de- infância, que mesmo não sabendo ler, não se esqueciam de mandar a canalha fazer os trabalhos. Os pequenos andavam por ali, mais ou menos debaixo de olho. Brincavam na rua uns os outros, enquanto as mães alinhavavam toalhas intermináveis e empilhavam cestos em molhos de 20, que rendiam uns cobrados extras ao fim do mês, mas que nunca chegava para a independência financeira.
Raramente se queixavam disso. As mulheres da aldeia mais facilmente se lamuriavam pelos humores do tempo, do que pelas agruras da vida. Mesmo com marcas no corpo. E eram muitas as cicatrizes. Resmungavam com os garotos de ‘má calete’, com os ‘diabos’ que só queriam taberna, mas dificilmente amaldiçoavam a sua sorte. Rijas.
Quem visse de dentro até podiam parecer resignadas, mas o seu grande movimento só se viu mais tarde. As filhas e netas tiveram outras escolhas e já não vão à casa do povo.
Publicado originalmente a 21/10/2018, mas nunca tão atual como hoje. Sendo filha de uma “mulher da casa do povo”, honrarei sempre o seu legado, a sua resiliência, mas nunca farei uma ode às suas opções reduzidas. As filhas, as netas e bisnetas das mães, das avós e das bisavós da “Casa do Povo” serão o que elas quiserem e não o que lhes impuserem.
Esta crónica faz parte do Livro Contos Insularados, que vai ser apresentado dia 24 de abril no Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal, pelas 17h30.