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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

16/04/2023 08:15

As manhãs eram difíceis e a comida provoca engulhos quando ingerida tão cedo. A mãe esmerava-se e tentava convencer com um ovo estrelado deixado no ponto certo para receber o miolo da fatia de pão de casa, amassado, sempre ao sábado, pela avó. Mas não havia quem a convencesse, era como se a comida não passasse àquela hora do dia. Era uma dor de cabeça diária, mandar a garota para a escola sem comer, contrariando tudo o que ouvia nas parcas consultas do centro de saúde, onde ninguém falava de jejum intermitente.

- Não vais aprender nada, ameaçava a progenitora, perante o amuo da garota, que ripostava que àquela hora tudo lhe dava vómitos. Não conseguia conceber mandar o anjo com fome para a escola e lá ia dizendo que pelo menos o leite. Nem isso.

- Vais perder o autocarro. Nada, até que a mulher acabava por desistir, vencida, pensando qual seria o dia em que ia ser chamada à escola, acusada de negligência, quando a pequena desmaiasse, em plena aprendizagem de rios e afluentes que nunca tinham visto. O mais que conheciam era o ribeiro das hortas, uma armadilha para os homens que se perdiam na cerca, no fim do dia de trabalho, e já "não chegavam sós a casa". Felizmente, não lhe ficava em caminho da paragem do autocarro, que apanhava desde os seis anos para chegar ao lugar que a levaria a um destino diferente da mãe e da avó. Era o que todas esperavam. "Coitado do anjo, sem comer, nem nada", apontava a avó. "É biqueira", lamentava a mãe, já sem forças para lutar e que já eram quase 7 horas e que a camioneta não esperava. O senhor Mateus parecia saber daqueles desatinos matinais e chegava sempre no minuto certo.

-Lancho na escola, assegurava a petiz, enquanto metia às costas a mochila comprada no início da primeira classe e que devia dar até ao quarto ano, mas que já tinha um buraco no canto, que havia de ser cosido, para não alastrar.

Era uma arrelia aquelas manhãs de insistência, teimosia e finca-pé mútuo, que acabavam com a pequena de lágrimas nos olhos a garantir que estava maldisposta. A mãe arrancava uma tangerina verde da árvore ou cortava uma casquinha de limão, para que a menina cheirasse, que ajudaria a ultrapassar os engulhos das manhãs. Era um alívio para ambas quando a pequena sentava no banco, junto à janela, a ver o sol nascer no mar, com os citrinos protetores no bolso. A mulher ficava numa preocupação, que era hoje que daria uma coisa à criança. "Olha a vergonha, quando as irmãs souberem que não lhe dou pequeno-almoço", pensava com os seus botões, até se entreter com os afazeres. A pequena lembrava-se da mãe quando, por volta das 10 horas, já sentia a barriga a roncar de fome, como se troçasse da situação. "Devia ter comido de manhã", refletia, enquanto passava a mão pela tangerina ou pela casquinha de limão do bolso da bata e sabia que ia correr tudo bem. Não tardava devoraria o pão com manteiga de todos os dias e que tão bem lhe sabia como "quebrajum". E na manhã seguinte repetiam tudo outra vez.

Era uma dor de cabeça diária, mandar a garota para a escola sem comer, contrariando tudo o que ouvia nas parcas consultas do centro de saúde, onde ninguém falava de jejum intermitente.

Sandra Cardoso escreve

ao domingo, de 2 em 2 semanas

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