Nessa e nas anteriores, que não vivi, a criação de gado bovino para carne, mas sobretudo para leite, era comum por essa terra fora e aos meus mais próximos não eram exceção.
Um pouco a sul de onde vivia estava a casa duma tia que, como tantos outros, se dedicava à recolha na fonte do precioso líquido oferecido pelas vacas e entrega ao ponto duas vezes por dia. Esse ponto de recolha, o mais próximo, situava-se nas Adegas, o sítio a leste do nosso e para lá chegar era preciso atravessar a ribeira, fronteiras administrativas naturais da nossa terra. Havia dois caminhos possíveis (entre os mais curtos, naturalmente): a estrada municipal em alcatrão, bem apetrechada e em melhor estado à altura que agora ou a vereda a sul da minha casa, de terra batida, lampreia e ponte de tábuas, à altura em muito pior estado que agora. Esta última mais utilizada porque encurtava o trajeto, porém, como seria bom de ver, não aconselhável, para bípedes, em dias molhados.
Num dia qualquer, o meu primo Miguel foi incumbido da entrega da tarde. Tinha chovido e ele avisado para tomar o caminho mais largo, ou seja, a estrada. Eu acompanhei-o como fazia tantas vezes. Vasilha ao ombro e toca a subir caminho de calçada de pedra irregular acima. A medição caseira dava nove litros de leite de vaca fresquinho, a borbulhar.
Chegados a meia ladeira, após a curva e longe dos olhares precrustadores, o meu primo Miguel não resistiu e sugeriu que cortássemos caminho pelo enlameado trilho desaconselhado a bípedes em dias molhados. Eu como menina mais nova quatro anos ainda me lembro de dizer que tinha medo de passar a ponte de tábuas da ribeira, mas segui o líder legitimado por umas dezenas de meses…
Passamos a parte do Lombo de São João, nosso sítio, e até a ponte de duas tábuas sem quaisquer problemas. Porém, a subida ao sítio das Adegas através de degraus cavados na terra batida correu mal. Escorregou o meu primo, escorreguei eu e escorregou a vasilha, também… escorreu o leite da vaca até a ribeira, apressado, grosso, fervilhando. Alvo sobre a rudeza escura da lama molhada, como uma donzela tomada por um escudeiro sujo.
Não havia nada a fazer. Ponderamos voltar para trás e assumir o erro ou prosseguir e fosse “O que Deus quiser”. Assim fizemos: mediação 900 ml. A vasilha quase esvaziou.
Trémulos, agora pelo caminho principal para nem nos depararmos com a lama hidratada pelo leite derramado, chegámos a casa da tia. O tio, reparou não só na medição como na maquilhagem corporal de lama que apresentávamos. Zuniu sermão nas ventas do primo e nas minhas também. Chorou o primo desalmadamente como quem o vê agora não acredita. Fiquei em silêncio, ao seu lado, certa de que para a próxima não seguiria o caminho de ninguém, se fosse contra o que acredito ou contra o que confio para, ao contrário do meu primo nesse dia, evitar chorar sobre o leite derramado.