Num dia éramos uns miúdos a comer bolachas Maria com manteiga, molhadas em chá, enquanto fazíamos os trabalhos de casa na mesa da cozinha lá de casa e no outro já cá não estavas.
Parece que foi ontem. A casa da minha mãe, onde havia sempre espaço para mais um, onde havia sempre mais um lanche e mais um afeto, onde ficavas quando a tua mãe - que foi tantas vezes teu pai também - tinha de trabalhar e era a tia, também ela mãe e pai, quem te levava para casa. Ou na vossa, onde éramos sempre da casa e nunca convidados, no quintal debaixo da vinha numa mesa onde nunca éramos demais e onde aparecia sempre mais um primo, que nunca ficava por alimentar.
Onde corrias e andavas sempre livre e solto, líder daquele grupo de miúdos que ali se encontravam e onde parecia sempre caber mais um. Tínhamos diferença de alguns anos, mas havia lugar para todos, também nas brincadeiras de uns e outros que se separavam e encontravam à volta daquela casa pequena, mas de recantos infinitos. Na cama de rede de que tanto gostávamos e onde disputávamos sempre lugar. Não me lembro de entrares nessas disputas, de te ver em confronto sequer. De te queixares, de perguntares pelo pai que nunca conhecemos e que te foi ausente. Sempre "cinco estrelas", como no verão passado, quando nos encontrámos na festa do verão e estivemos a pôr a conversa em dia. Tu mais à escuta, que é um talento de poucos.
Quase que sinto o sabor a bolacha Maria e gostava de voltar a esse momento na cozinha da minha mãe. Quantos sonhos terias? Todos "cinco estrelas", que era como respondias sempre à pergunta: "Tudo bem?". E se pudéssemos alterar o destino de forma tão fácil como quando molhávamos a bolacha no chá quentinho naquelas tardes de TPC? E suavizar uma vida que te foi dura tantas vezes, na tragédia que talvez fingisses não te pesar, com a leveza com que pairaste no mundo. Afogaste, por certo, as mágoas e a dor que não verbalizavas, que camuflavas mais do que deverias e isso ditou um fim precoce. E deixaste mãe órfã de filho, que será a pior orfandade que se pode ter. Não sei que demónios carregaste e gostava de não ter ficado pelas "cinco estrelas" bem-dispostos com que me presenteaste nas esparsas vezes que nos encontramos na idade adulta. Espero que haja bolachas Maria com manteiga desse lado para onde foste. Que seja "cinco estrelas" de verdade e que não te pese mais do que o suportável. Que seja leve como as tardes de correria doces da nossa infância. E que descanses em paz e deixes ir os demónios que te acompanharam.