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Artigo de Opinião

GATEIRA PARA A DIÁSPORA

19/11/2024 08:00

À tia Maria que daqui a nada celebra os seus 80 anos e que em criança se questionou sobre o que acontece aos barcos quando desaparecem no horizonte.

O facto de a minha filha mais velha ter tido de preparar uma apresentação sobre o seu instrumento de música favorito, o piano, acabou por me fazer ler o romance gráfico Forté por Manon Heugel (texto) e Kim Consigny (ilustração) – que tem por protagonista a Flávia, moradora da favela de Belém (Brasil), que acabaria, na história, por se tornar uma ilustre pianista depois de ter estudado na École Normale de Musique de Paris, cofundada por Alfred Cortot, um exímio pianista e grande intérprete de Chopin. Contudo, por vir da favela, o destino de Flávia parecia estar traçado: deveria ter um ofício útil. Por vezes, é tão importante baralhar a direção do traço, e da utilidade.

Depois, houve um desenvolvimento no mundo musical português relativamente à maneira como um véu de omertà – outro – era perfurado pelas mesmas vozes de quem até então esse véu asfixiava. Liliana Cunha, com o nome artístico de Tágide, conta que o seu testemunho que acusa um pianista de jazz português de violação também foi impulsionado por outros testemunhos – liberdade gera liberdade – de diferentes formas de violência exercidas no meio musical com epicentro no jazz, ao que se seguiram muitos outros relativamente ao que não vai bem no reino do improviso que parece ser o nosso em termos de consentimento. A discussão em torno do stealthing (a não utilização de preservativo sem consentimento do/a parceiro/a) é já um importante contributo.

Filipe Melo é outro pianista que deu um grande destaque à questão. Lembrei-me de que tinha um livro seu, com ilustração de Juan Cavia, que já estava à espera de ser lido há algum tempo: Balada para Sophie. Aí, também há um virtuoso do piano, que ainda estou a aprender a conhecer, Samson François – que fora aluno de Cortot; se puderem, ouçam os seus Études de Chopin. Quando penso em Filipe Melo, penso muitas vezes naquele soberbo arranjo que fez jus aos 50 do 25 no Festival da Canção deste ano; agora, também não posso deixar de pensar nele por causa disto. Na sua publicação nas redes sociais chama a atenção para a esperança que a nova geração representa: mais alerta para a realidade que a rodeia, e vocal, quer para denunciar as violações de direitos, quer no apoio à vítima. Esperemos que faça o que a nossa geração não está a saber fazer.

O destino quis que tanto esta publicação nas redes sociais como a partida do Vendée Globe 2024 tivessem acontecido no mesmo dia, o meu aniversário. Esta competição náutica de veleiros pelo mundo em solitário sem escala nem assistência, de cerca de 45 000 km através de três oceanos e de vários climas, passa por três dos grandes cabos austrais: Horn (Chile), Leeuwin (Austrália) e Boa Esperança (África do Sul). Foi um filme que ainda não consegui ver que me aguçou o interesse para esta competição, La Vallée des Fous (O Vale dos Doidos), em que um apaixonado pela vela atravessa um momento difícil da vida – dívidas, alcoolismo, isolamento em relação aos seus – e decide inscrever-se na regata virtual do Vendée Globe para se circum-navegar. Uma volta ao mundo sem sair do barco ancorado no seu jardim durante três meses: como será esta travessia?

Ainda há dias, a regata passava ao largo da Madeira, mais ou menos na mesma altura em que se verificava um sismo no complexo geológico subaquático Madeira-Tore. Vejo que este complexo geológico é também composto pelo monte submarino Josephine. Este é um dos nomes próprios da minha filha mais nova, herdado da sua bisavó alsaciana que nunca viu o mar.

Por último, é uma pena, como diz David Pontes, que «os cravos de Celeste não [tenham chegado] a Moçambique» e que, como diz Bernardo Martins em entrevista a Ana Cristina Pereira no PÚBLICO, uma parte dessa liberdade de Abril também ainda não tenha chegado à Madeira.

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