Passou a objeto de destaque no móvel que albergava o gira-discos, que já não girava há uns anos. Um problema de agulha, mas naquela altura o vinil já estava em desuso e os discos dos Beatles, Bonnie Tyler e Duran Duran ganhavam pó na prateleira debaixo do móvel, onde eram agora objetos decorativos. Longe iam ficando os tempos de slows dançados noite fora no terreiro nas noites de verão, embalados pela brisa suave e pelo arranhar da agulha, então estragada, nos discos de vinil quando não chegavam a ganhar pó e eram tratados com a delicadeza das coisas valiosas.
Nesses dias, a música já escasseava assim como os dias de festa. O gira-discos estava sempre com a tampa fechada e um naperon de crochet a aconchegar aquele montinho de gesso pintado, decorado com brilhantes, que eram as suas pequenas mãozinhas, que um dia unira bem juntinhas, a pedido da Irmã Teresa, na sala da primeira classe.
Esmerara-se para não deixar escorrer e mais se esforçara na pintura, apesar da manifesta falta de jeito para os trabalhos manuais. Mil vezes ditados, contas e tabuadas, mas não a mandassem desenhar, picotar, pintar ou cortar a direito ou até mesmo torto, que ficava logo em desassossego, com doses iguais de mãos suadas e insegurança. Mas naquele dia, saiu-se bem: As mãozinhas não claudicaram, nem quando juntinhas para receber o gesso mole até solidificar, nem na hora de pintar, merecendo elogios rasgados da freira-professora, que lhe eram habituais em português, matemática e meio físico e social, mas raramente nos trabalhos manuais ou educação física. Feito o processo de secagem, escreveu Dia do Pai, com a letra manuscrita, redondinha, que, com pena, deixou de saber fazer, como se aquela caligrafia se fosse perdendo com o fim da inocência desses dias, onde o mais importante era brincar em campos de feno amarelo ou comer ervilhas tenras acabadas de apanhar.
No dia certo, levou, orgulhosa e ansiosamente, a obra de arte para presentear o progenitor. Era um porta-canetas para um Pai de mãos calejadas da enxada e que, tanto quanto sabia, nunca tinha despachado papéis a uma secretária, que era coisa que não existia lá em casa. O Pai comoveu-se e escolheu o melhor sítio para o presente desadequado. O móvel do gira-discos, que já não tocava naqueles dias e onde pousava um naperon de crochet. Usava a caneta para apontar um número de telefone ou escrever os postais no Natal, mas tratava aquelas mãozinhas pequenas de gesso como uma preciosidade. Um dia caíram do gira-discos e perderam um dedo, que acabaria por ser colado umas semanas depois. Era a metáfora da relação entre ambos. Imperfeita tantas vezes desajustada, mas onde muitas vezes deram o seu melhor. Às vezes colada a ganhar pó num gira-discos que já não toca, mas de onde se lembram de ter escutado a melhor música, naquelas noites quentes de verão, de festa e slows pela noite dentro.