Nem todos terão vivido a época de forma festiva. Alguns não puderam e outros talvez nem a queriam lembrar, algo impossível, entre nós, a menos que se viva como um eremita. O Natal começa a gritar-se com bastante antecedência. É o período glorioso do consumismo, do excesso de comida, bebida, de bens, de brilhos e luzes. A fartura de iguarias e de divertimento atiram para trás dos recantos escuros a privação e o sofrimento. Sabemos que eles existem, mas fazemos por fingir que não.
E cumpriu-se o Natal com o seu rol de incongruências: de um lado, as sombras da miséria, da exaustão do planeta e do extermínio cruel das guerras; do outro, o espalhafato fútil da euforia incontida. Duas realidades em vasos paralelos incomunicantes muito bem espelhadas nos programas televisivos. Cenas de escombros e morte, anunciadas com hipócritas advertências à possibilidade de chocarem os espetadores, são logo seguidas por outras de festas, gargalhadas, cantorias e repastos. Elencam os infortúnios sociais: aumento de sem-abrigo, famílias sem sustento e, de imediato, passam imagens em que multidões esfuziantes vibram junto a um palco ou se acotovelam para chegar ao balcão de venda de sandes, doces, poncha ou outra coisa qualquer. Se alguém tem fome, ou carência financeira, não parece e a notícia anterior já se apagou da mente de todos.
E faz-se o Natal, sem que lhe falte o quinhão de religiosidade a competir com o profano: missas do parto, do galo e o povo madruga com vontade de orar e de folgar. O que mais pesará?
E o desfile de contradições continua. Nas palavras, persistimos no humilde nascimento de Jesus — pobrezinho, numa gruta — tal como escreveram os autores da bíblia. Ao lado da manjedoura, até mantemos José, rústico no traje e bordão de caminhante, e a virgem-mãe, coberta com modesto manto. O Menino, porém, nós, madeirenses, tratamos de o requintar, envolvendo-o em finos linhos recamados a bordado Madeira.
A inclusão, no presépio, do bordado, flores e outras regionalidades, sendo que acrescentam inegável beleza, não deixam de ser também um aproveitamento publicitário para os ex-libris da ilha — ou não fosse o turista alvo central em todos os nossos eventos. Queremos mostrar-lhe tudo o que assumimos como genuinamente nosso, mesmo quando isso não corresponda à realidade. Os nossos bordados, o nosso bolo de mel, a nossa poncha, a nossa sopa, o nosso bailinho e todos os “nossos” que consigamos enumerar.
E, nesta febre, tudo almeja ganhar estatuto de cultura, até a morte do porco a vi reivindicada como tal. A “função do porco”, como lhe chamam, é uma reminiscência de tempos em que a matança do suíno que cada família criava ganhava contornos de celebração, por suspender a frugalidade vivida ao longo do ano. Nos dias de hoje, a carne de porco, e de todos os bichos mais, abunda em quantidades obscenas nos talhos que por aí proliferam. Por consequência, o ato tornou-se desnecessário e esvaziou-se de sentido festivo, a menos que haja quem se compraza com a imolação do animal.
Não crendo que a matança do porco na Madeira tenha diferenças que justifiquem a sua exibição, ainda assim, consigo entender que, por saudosismo, a queiram reproduzir para mostrar como era. Fazer dela um festim ou espetáculo é chocante. Na minha perspetiva, a morte, seja lá do que for, nunca o deveria ser. Considerá-la um ato de cultura é incompreensível e inaceitável.
Que o novo ano traga mais siso à humanidade.