Agora que o meu corpo envelhece e força uma estranha inclinação para guardar as árvores das sombras, talvez a boca que não foi corrigida aprenda uma nova língua para entrar na solidão. Uma faca a luzir no centro da noite; por acaso uma flor equestre movendo-se um pouco acima dos meus olhos. O dedo da criança apontado à minha cabeça.
Se soubesses como desejei tanto, como imaginei ventos entediados pelas sucessivas manhãs de um futuro antiquíssimo. As minhas mãos anoitecem agora demasiado rápido, não são já a casa de ninguém nem a carne da ternura que fica por nascer. Enquanto tudo acaba e as minhas mãos procuram perder a fé, inclino-me ainda sobre um corpo que reza e rasa a última névoa até ao desaparecimento da primitiva ferida. O ar pesado escurece os meus olhos; eu hei-de reconhecer o teu rosto no meio de outras peles e tamanhas escuridões. O teu corpo há-de ser água e não terá fim, e hei-de voltar a comover-me nesse líquido que a terra ensaia para descer ao céu, agora que invento horas e sombras mortas para o regresso das árvores. Sim, hei-de reclamar toda a nudez e beber o rio pelas margens.
As mãos caem-me do corpo no regresso a casa. A cabeça é dolorida e dorme para dentro da própria dor; não tenho mãos onde pousar a cabeça, e até o silêncio do mar tão profundo, sem sombra de convalescença, se retrai para me abrir os braços do pai. A minha carne está entregue, oxida na tua dura saliva e permanece no mistério que só a inefável beleza dos teus ombros me devolve, depois de colhida a estrela mais terrível. Eis-me aqui. E se eu souber ser a mulher que morre e fere de alegria o peito do rapaz, talvez o vulto rápido de um peixe venha afagar-me as pernas antes que a casa explique a ruína e o corpo reclame o sentido de uma gravidade que o atira com empenho à mandíbula do tempo.
Agora que as árvores abandonam de vez as suas sombras e um deus vacilante lhes devora os derradeiros frutos, torno ao prazer de me levantar da pele já gasta forjando a água quente que fui beber aos teus flancos. Enquanto tudo acaba, a minha boca há-de consentir a deglutição de uma única palavra, infligindo ao corpo a sombra obediente da sua ausência.