Se eu não fosse tua mãe, toda a minha melancolia seria inútil. Como poderia, então, entrar no escuro para ver dali o fim do mundo até ao primeiro cisne? O que seria eu sem a estrela banhada no sangue do meu ventre, sem a forma das tuas mãos, sem o cheiro da tua sombra inclinada sobre o meu peito? Eis a mãe, este corpo imprevisível donde não se sabia poder nascer. Não como naquele dia, nunca como daquele dia. E dez anos desceram sobre nós e esse Domingo; um vento limpo e insonoro a bater-nos na pele, uma travessia em mar aberto, rápida como um susto de alegria. O tempo, essa espantosa raiz das melancolias que nos atira para as profundezas do corpo que resta de nós, testando ruínas e procurando no escuro a água da flor que recomeçou ainda antes de ser tocada.
Nasce-nos um filho e pronto, sentimos, por fim, o sal completo da nossa nudez, a palavra que morrera toda a vida por detrás do estômago e deflagra, para sempre, como um deus desconhecido. E o sangue escorre pelas pernas da mãe, quente, como um soro de refeita alegria. Eu que nem sabia desta absolvição incurável de um corpo que guarda outro corpo, ou da terrível impossibilidade de salvá-lo até ao fim. Terrível.
Se eu não fosse tua mãe, nenhuma das minhas escamas poderia jamais reacender-se, não haveria qualquer beleza nas minhas falhas nem comoção tão absoluta nos meus tédios. És tu, filha, quem me salva das escamas mortais da banalidade, desbravando a noite com o teu bastão de ternura. Reconheço-te a coragem de me teres escolhido entre mães inteiras, de teres detonado com o limite milagroso dos teus dedos o relâmpago sobre a palavra afinal adormecida.
Eis o lírio mais profundo, as mãos, a mãe que atravessa todas as mortes até à chegada de um filho.