O que é a memória? Um molhinho de falsidades floreadas, pintadas com saudades, que é uma branqueadora das quezílias, dramas e amoques familiares.
A memória é como uma fotografia cheia de filtros das redes sociais. Nunca ficam as tentativas falhadas, não ficam as imperfeições, os olhos fechados, nem aquele que se chateou e que já não queria estar no retrato. O cão que tapou o avô com a cauda. A frase inconveniente daquela tia, que não resiste a dizer que já estivemos mais magras. A asneira que escapa da boca do adolescente. O bebé aos gritos que não percebe a razão de lhe alterarem a rotina.
É uma tirana, a memória, que só nos impinge o que quer como quer, para nos deixar o coração simultaneamente quente e vazio. Cheio e oco. Alegre e triste. O expoente máximo da antítese.
Na verdade, nunca foi harmonioso o Natal da minha infância. Arrancava sempre com uma avó em stress máximo (e acho que a palavra ainda nem tinha entrado no léxico da época) a reclamar que ninguém a ajudava, que era todos os anos a mesma coisa. Que para o ano não seria assim e que extinguiria a ceia da sua angústia para sempre. Mas no ano seguinte, a mesma ladainha e o perfume que a memória guardou embalado em papel de presente que se reciclava com os lacinhos numa gaveta para o ano seguinte. Havia sempre alguém zangado, alguém em incumprimento, alguém em falta ou em excesso. Diminutivos e superlativos que se encontravam àquela mesa no silêncio cúmplice da disfuncionalidade. O medo de ver quem é que dava o mote para escalar em guerra aberta aquela paz podre, que – parece-me- fazia parte da tradição. Aquela guerra fria, que esmorecia assim que nos sentávamos e a canja começava a aquecer a nossa alma e a derrubar os muros de incompreensão que se erguiam na quadra natalícia. A avó perdia a pose de general com os elogios ao repasto, com a sua forma de bem fazer – ainda que fizesse parte da sua técnica de motivação arrasar as tropas incompetentes que éramos todos nós. Era como se o anjo de Belém descesse à terra naquela hora, todos os anos. A nossa memória também era seletiva nesse tempo. Rapidamente nos esquecíamos dos muros, da guerra fria familiar e a diplomacia assumia o seu lugar. A harmonia e os valores da Festa sentavam-se connosco à mesa. Acho que os mais velhos sentiam saudades dos que já não estavam. A memória deles seria como a minha. Falsa. Arbitrária. Inconstante. De certeza recordavam momentos felizes, como os que recordo agora. Com os filtros todos da saudade, essa branqueadora que nos faz esquecer e lembrar como lhe convém e não necessariamente como foi. Este é de facto o melhor filtro. Festas felizes. Que todas as guerras sejam com as da minha infância, que eram afinal momentos de paz.