MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

24/12/2023 08:00

O que é a memória? Um molhinho de falsidades floreadas, pintadas com saudades, que é uma branqueadora das quezílias, dramas e amoques familiares.

A memória é como uma fotografia cheia de filtros das redes sociais. Nunca ficam as tentativas falhadas, não ficam as imperfeições, os olhos fechados, nem aquele que se chateou e que já não queria estar no retrato. O cão que tapou o avô com a cauda. A frase inconveniente daquela tia, que não resiste a dizer que já estivemos mais magras. A asneira que escapa da boca do adolescente. O bebé aos gritos que não percebe a razão de lhe alterarem a rotina.

É uma tirana, a memória, que só nos impinge o que quer como quer, para nos deixar o coração simultaneamente quente e vazio. Cheio e oco. Alegre e triste. O expoente máximo da antítese.

Na verdade, nunca foi harmonioso o Natal da minha infância. Arrancava sempre com uma avó em stress máximo (e acho que a palavra ainda nem tinha entrado no léxico da época) a reclamar que ninguém a ajudava, que era todos os anos a mesma coisa. Que para o ano não seria assim e que extinguiria a ceia da sua angústia para sempre. Mas no ano seguinte, a mesma ladainha e o perfume que a memória guardou embalado em papel de presente que se reciclava com os lacinhos numa gaveta para o ano seguinte. Havia sempre alguém zangado, alguém em incumprimento, alguém em falta ou em excesso. Diminutivos e superlativos que se encontravam àquela mesa no silêncio cúmplice da disfuncionalidade. O medo de ver quem é que dava o mote para escalar em guerra aberta aquela paz podre, que – parece-me- fazia parte da tradição. Aquela guerra fria, que esmorecia assim que nos sentávamos e a canja começava a aquecer a nossa alma e a derrubar os muros de incompreensão que se erguiam na quadra natalícia. A avó perdia a pose de general com os elogios ao repasto, com a sua forma de bem fazer – ainda que fizesse parte da sua técnica de motivação arrasar as tropas incompetentes que éramos todos nós. Era como se o anjo de Belém descesse à terra naquela hora, todos os anos. A nossa memória também era seletiva nesse tempo. Rapidamente nos esquecíamos dos muros, da guerra fria familiar e a diplomacia assumia o seu lugar. A harmonia e os valores da Festa sentavam-se connosco à mesa. Acho que os mais velhos sentiam saudades dos que já não estavam. A memória deles seria como a minha. Falsa. Arbitrária. Inconstante. De certeza recordavam momentos felizes, como os que recordo agora. Com os filtros todos da saudade, essa branqueadora que nos faz esquecer e lembrar como lhe convém e não necessariamente como foi. Este é de facto o melhor filtro. Festas felizes. Que todas as guerras sejam com as da minha infância, que eram afinal momentos de paz.

OPINIÃO EM DESTAQUE

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Concorda com a introdução de um novo feriado a 2 de Abril do Dia da Autonomia?

Enviar Resultados

Mais Lidas

Últimas