Vinha todo o ano, mas era no verão que deixava mais memória. Naquelas manhãs preguiçosas em que o sol tardava a dar ar de sua graça, escondendo-se entre as nuvens, para depois se apresentar em todo o seu esplendor nas tardes intermináveis de praia.
"Atum, atum, quem quer comprar atum, é a carninha do mar". Irritava-se com aquela forma de acordar em tempo de férias, mas era impossível não rir com aquele pregão. A vizinhança amontoava-se ao largo à volta do senhor Francisco do peixe e discutia: Que era muito grande, que não podia ficar com um peixe daquele tamanho, que estava muito claro ou muito escuro. Por vezes, juntavam-se dois vizinhos e adquiriam a meias um belo exemplar pescado ao largo, que comprado inteiro era mais em conta. Discutiam preço, tamanho, e - atenção à balança - numa rotina que era quase um bailado, naquelas manhãs pachorrentas de verão. Uma parte em bifes, outra em postas. A prova dos nove vinha ao almoço, bifes de atum de cebolada a acompanhar um prato de milho quente. Que era uma delícia, fresquinho de verdade, que o senhor Francisco não tinha enganado, que era bom homem. "Era o que mais faltava, não iria perder um cliente".
E dois dias depois lá voltava o senhor "pesquito" com mais peixe. Chicharros e espada. Era escolher. "Está caro", lamentavam-se. "É pequeno, quero isso bem limpinho", acrescentavam. O homem do peixe ripostava, que era ir ver o preço a que tinha comprado, que há pouco peixe e que a vida é uma dificuldade para todos.
Era um bailado aquela coreografia. A carrinha frigorífica branca -outrora uma furgoneta de caixa aberta - que se anuncia, que para e espera a clientela, que vem e responde sempre. E o pregão para toda a freguesia, que, do alto do monte com o mar ao fundo, parecia tão longe daquela vida de peixe e pescadores, que o senhor Francisco trazia com o seu anúncio, que ecoava pelas ruas da aldeia e acordava a canalha de férias de verão. "Atum, atum, a carninha do mar", dizia e não consta que tenha estudado marketing. A frase ficou para sempre e ainda hoje faz salivar e lembrar aqueles piqueniques, o escabeche, e o peixe que vinha do mar à serra naqueles verões de boa memória e de despertares à força.