Acordaram naquela madrugada com o som do velhinho telefone preto, na altura novo. Tinha sido uma noite especial, com direito a dormir no quarto dos pais, aquele local mágico, reservado aos dias de pesadelos ou noites mal dormidas por algum desconforto dos tenros anos. A mãe não estava, mas garantiram-lhe que era provisório e que voltaria com um bebé, que era um ser assim meio etéreo, numa altura em que as ecografias neonatais eram menos precisas do que o Veloso a marcar pelo Benfica (tirando aquele penalty na Final da Taça dos Campeões em 1988, que apenas confirma a regra).
"É igual ao que temos em casa", escutou, ainda que o velho telefone preto não tivesse alta voz, nem o conceito tivesse ainda sido inventado. "Correu tudo bem", garantia a mãe, com um timbre quase sumido que, mais tarde percebeu, talvez fosse cansaço. Naquela altura, não se falava em humanização do parto, nem em acompanhamento da puérpera. Parir era um ato de solidão, numa sala assética, lotada de batas brancas. O bebé chegara ao mundo pouco depois da meia-noite daquele início de outubro.
O pai tremia que nem varas verdes do alto dos seus então 30 anos. Não sei se era da responsabilidade de ter mais uma boca para alimentar ou se era por ser outra menina, quando tudo fazia crer que seria menino. As miúdas "sem cabeça" perdiam-se e às vezes engravidavam na adolescência e, ainda que não o fizessem sozinhas, eram sempre elas que caiam em desgraça. Por isso, havia a ideia de que a vida era mais descansada quando se tinha rapazes, embora, por norma, "não fossem tão bons para a escola".
Talvez fosse nisso que o pai pensava enquanto, desajeitado e num terreno desconhecido chamado fogão, fervia o leite tirado de véspera da cabra que fazia parte do agregado familiar, que ajudava a alimentar. Naquele tempo já não se era jovem aos 30 anos, como hoje, e homens e mulheres tinham papéis bem definidos: Eles só entravam na cozinha para se sentarem à mesa. O leite acabaria, sem surpresa, entornado no meio de vidros, por ter sido colocado num copo, que não permitia temperaturas tão elevadas. A até então filha única, agastada pelo tumulto, dispensou o pequeno-almoço, e o nervoso progenitor meteu-se na primeira camioneta para a cidade para ir para o Hospital que na altura se chamava novo, embora já fosse velho, ao contrário do moderno telefone preto. A pequena, recém-promovida a "mais velha", fora deixada aos cuidados de familiares, que lhe diziam que agora tinha de ajudar a tomar conta do bebé e que tinha de ser crescida e responsável. A psicologia era tão estranha nesse tempo como um homem na cozinha fora da mesa. A mãe só se enganou numa coisa. Não podia ser mais diferente daquilo que tinha em casa. Mas até o Veloso falhou naquele dia de 88 e foi isso que ficou para sempre… como o leite de cabra derramado entre vidros, naquela refeição a dois que já não aconteceu.