Era mais um contrassenso. Embora a infância habite num mar de incoerência com ondas de insensatez e ninguém exigisse consistência para além do aqui e agora, que eram, na verdade, tudo. O largo do cemitério era, assim, simultaneamente lugar de medo, quando enfrentado a solo, e das melhores aventuras, quando vivenciado em grupo. Era lá que se jogava à macaca, ao stop e ao anel, tardes inteiras, em que as atividades de tempos livres eram verdadeiros exercícios de liberdade, que duravam até o chamamento da mãe mais despachada: “Jantar”.
Também era por ali que se tinham as maiores brigas para decidir se a pedra estava na linha ou fora ou se a bola tocou ou não e quem é que verdadeiramente ganhou a “matança”. Na dúvida, e sem vídeo árbitro isento, passava-se para o “Lá vai obra”, onde nos encavalitávamos em posições inacreditáveis, que, vistas à lupa dos dias de hoje, muito surpreendem por não terminarem em fraturas e feridas expostas.
Mas quando a noite caía cedo, sempre demasiado cedo, sobretudo no inverno, e o vento soprava agitando as árvores e os nossos pensamentos mais sombrios, era diferente. Aí, atravessar o então silencioso largo das nossas brincadeiras, onde, enquanto dávamos sonoras gargalhadas e entusiasmadas discussões, víamos as viúvas, as mães de filhos mortos e os órfãos de pais novos e velhos, carregar flores, lágrimas e tristeza para dentro dos portões, pesava-nos o medo irracional do desconhecido e incompreensível. O largo tornava-se lúgubre, assustador e, se possível, evitável. Preferíamos a vereda como alternativa ao extenso largo, exercício prático diário dos nossos sonhos.
Crescemos, o largo encolheu. É hoje um parque de estacionamento de carros que não existiam. Já ninguém grita o “Lá vai obra” e não há gargalhadas a perturbar o eterno descanso dos que já partiram. Hoje os órfãos, de pais novos e velhos, somos nós.