A Lourdes Castro toca-me desde o princípio, ou talvez desde o fim, que é outra forma, porventura a mais precisa, de dizer princípio, ou o único milagre de que é possível fazer prova. Não sei bem por onde começar a morte quando me dizem que partimos para a luz - que aflição, a luz - quando o corpo todo nos pesa antes da glória da sombra que há-de vir, pois se só podemos desejar uma sombra, o fio do corpo que perece irrompido do escuro, uma quase morta mão onde todo o tremor é ainda - para sempre - desejo.
Lourdes, reconheço o jardim na encosta, o mar ao fundo, a terra como exímio e insuperável exercício de ressurreição, as mãos que se repetem sem fim, da infância à "altitude", e conhecem sem obsessões de verdade o tremendo fôlego das flores e o sono perpétuo das árvores que tudo vêem desde o fundo da terra, desde o fundo das feridas. As mãos que vão sempre por dentro, sem a enlouquecida prudência dos mortais que não se sabem. Simples. Este sagrado e sanguíneo despudor do corpo-objecto, do objecto-corpo, a nidação da casa sobre o humo, o silêncio e a fulgurante ternura da roupa a secar, os lençóis entre os dedos, a nudez de um corpo eternizada no seu contorno. O desejo imorredouro do que é intocável, exacta ausência que não deixa o corpo ruir. A sombra que não se apaga.
Eu não sei, Lourdes, donde nasce este amor. Talvez nos tenhamos encontrado sob a árvore do jardim, ainda antes, muito antes, da minha chegada à ilha, num tempo em que o meu corpo ensaiava altitudes, e eu subia, em espanto, para as sombras. Hoje.