Era bonito o nascer do sol e fazia crer que estávamos abençoados por uma qualquer graça divina, quando saímos ensonados de autocarro pela fresca, a descer encostas, para ver acordar a cidade, luminosa, à nossa frente. As curvas e solavancos, provocados pelo pé precavido do motorista, entrecortavam os raios dourados e límpidos que aqueciam até a alma naquelas manhãs rotineiras a caminho da escola, onde a natureza vinha anunciar - no seu esplendor - que tínhamos sido bafejados com o sorriso dos deuses em cada manhã que se anunciava.
Mas era nas noites de lua cheia, com o seu brilho vaidoso sobre o atlântico, a deixar ver na penumbra a rocha esculpida, que vai da serra ao mar, destemida, e as Desertas a espreitar ao fundo, misteriosas, que mais certeza dava de que a nossa cruz, o nosso destino e nosso fado eram simultaneamente a nossa bênção, a nossa sorte e o futuro, que se adivinhava no amanhã radioso da cidade a acordar, que contemplávamos, - os sortudos com capacidade de ver e enxergar - nos solavancos do autocarro.
Nessas noites de contemplação, com os grilos a fazer banda sonora, e os barcos de pesca a parecer pirilampos no mar escuro, os sonhos- dos que se sonham acordados -fervilhavam como o brilho da lua nas águas calmas do atlântico.
A mãe dizia que era uma cabeça na lua. A avó corroborava, mas riam-se, com os planos de um mundo e uma vida longe dali, num misto de pouca credulidade e vontade de ver acontecer. Nos sonhos -daqueles que se sonham acordados em noites de lua cheia - raramente se veem os caminhos que não queremos percorrer, há ansiedade, mas só há lado A, nunca o B. Não há sombras, não há perdas e não há dor. Há borboletas na barriga, há um futuro para fazer presente. Nos sonhos, ganhamos sempre. Só há somas, raramente subtrações.
Nunca mais houve uma lua cheia com o poder daquela sobre aquele mar, com o recorte da rocha, que parece esculpida da serra ao mar, para nos fazer arrepiar na nossa pequenez ante o sagrado. Com todos os sonhos do mundo. Há luas verdadeiramente magníficas, imponentes, que se descobrem entre palácios e monumentos, nas florestas, noutros vales e montanhas, nos desertos. Também convocam os sonhos. Alguns realizados. Mas a lua sobre o atlântico, a lua que era casa, com barcos pirilampos e todos os sonhos - sem sombra - do mundo, essa é só ali. Penso que te sonhámos nessas luas e agora quando a vejo cheia, sonho/ sonhamos contigo. Que estás quase a nascer e já foste sonhado com a lua cheia sobre o atlântico há tantas luas atrás. Que escolhas a lua certa para nasceres. Podes vir, estamos à tua espera. Todos, mesmo os que já cá não estão, mas vivem sempre e viverão em ti, querido G, amparando e velando os teus sonhos, nas luas todas. Minguantes, novas, crescentes e cheias, no atlântico, que também é teu.