Os filhos tornaram-se adolescentes, adultos, independentes, os pais idosos e nós, no meio da vida e da crise.
Maria é uma mulher de quarenta e seis anos, de acordo com os ditames da sociedade ocidental, bem-sucedida, mãe de família, sem apertos, profissionalmente realizada e civicamente ativa.
Naquele dia, chegou a casa após uma jornada de trabalho como outra qualquer. Colheu os restos que jaziam nos recipientes de vidro com tampa plástica, dentro do frigorífico, dispôs pelos pratos e alimentou marido e filhos. A si não, a pressão social para a magreza impedia-a de comer, mesmo que tivesse fome, mesmo que lhe apetecesse muito o mini gelado de pacote escondido no meio das ervilhas, no congelador. Maria quase não comia, mas dava resultado, era magérrima, corpo feliz, estomago miserável.
Pelas nove e meia já os filhos, pequenos, estavam lavados e de pijama, prontos a dormir. O marido ocupando ostensivamente, e sem lugar para ela, o sofá da sala, o cão a fazer chichi na perna duma cadeira, o gato a arranhar a porta.
Na garagem a sua carrinha de gama média alta com as cadeirinhas instaladas lembravam-na da rotina que a esperava no dia seguinte, e no outro e em tantos outros.
As suas férias limitavam-se a duas semanas no Porto Santo onde se permitia ingerir um crepe no palito de vez em quando ou uma fatia de melancia ao jantar. Sair do Arquipélago da Madeira, era mais do que poderia almejar. As suas competências para organização e gestão de viagens não eram as mais apuradas e o marido não estava para aí virado.
Maria era, pois, uma mulher realizada, sem saber que não tinha motivos para o ser.
Foi dormir.
O dia clareou, o despertador tocou. Maria acordou com urgência revendo mentalmente a ordem de trabalhos daquela manhã: tomar duche, tratar da pele, não esquecer o protetor solar. Fazer o pequeno-almoço, tomar apenas uma chávena de café para não engordar, acordar os filhos, vesti-los, penteá-los, levá-los à escola, se despedir do marido já de saída, mesmo acordando depois.
Mas, não seria nada assim.
Não reconheceu os pés que pousou no chão ao sair da cama, estavam enrugados, secos, gretados, unhas amareladas e despidas. Quando se olhou ao espelho a cara flácida, o pescoço descaído, como que a se fundir com o decote, o cabelo comprido e desgrenhado, cinza esbranquiçado, os olhos amarelados.
Assustou-se, em pânico, chamou o marido que não respondeu, porque não estava lá.
Arrastou-se para o quarto dos filhos, mas também não estavam lá. O carro na garagem era pequeno, de dois lugares, sem cadeirinhas de bebé.
Voltou para o quarto, sentou-se na beira da cama vazia, da casa vazia. O tempo tinha fugido. A sua vida se consumido. Os filhos, batido as asas, pouco a visitando. O marido morreu. Estava só.
As viagens que não fez, os gelados que não comeu, os passeios românticos com o marido, que não deu, o descapotável que não comprou porque tinha de providenciar o curso superior aos filhos que agora pouco a visitavam. Tudo…como água na levada.
O tempo tinha fugido e Maria não o conseguiu alcançar. Agora, era tarde demais.