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Artigo de Opinião

Médica Veterinária

24/10/2024 08:00

Começo por fazer duas declarações precedentes ao que inspirou este artigo, e que o título explicita: 1) não sou técnica no domínio das doenças demenciais; 2) não gosto do que simboliza a figura de Ricardo Salgado; 3) não concebo que se desnude a vulnerabilidade humana expondo-a num circo de mediatismo perturbador-situação que vem sendo recorrente na comunicação social portuguesa, recentemente no caso do julgamento do caso BES e pouco antes na operação Ab Initio em que tanto a CS como a Justiça tiveram procedimentos que mais pareciam um julgamento prévio para condenação extemporânea de uma massa popular.

Lidei, pessoal e profissionalmente com patologias demenciais, esta última em torno de um estudo sobre os benefícios que os animais poderiam ter para pessoas afetadas por vários tipos de demência, conseguinte comprovar de forma significativa que os mesmos poderiam fazer decrescer os níveis de depressão nestas PESSOAS. E tenho de destacar esta palavra, pois a doença não destitui ninguém desta condição, mesmo quando ante nós essa pessoa, com quem partilhámos tão proximamente a nossa vida, um dia se perdeu na sua memória e cognição. Não é raro, sobretudo em idades mais avançadas, o processo demencial, inicialmente, ser confundido com uma depressão. A sintomatologia é aproximada, com falhas de memória, sobretudo recente, conservando-se, no entanto, para acontecimentos remotos, aliada a períodos de tristeza – o que é suscetível, aliás, de acontecer a qualquer um de nós em qualquer fase da nossa vida, sobretudo quando sujeitos a stresse extremo capaz de comprometer as nossas competências e faculdades, inclusive cognitivas. Mas em idades tardias, o diagnóstico acaba por ser “fácil”: se ao fim de 3 ou 4 semanas o paciente não responde à medicação para depressão, as suspeitas recaem fortemente sobre uma eventual demência (em que o Alzheimer, sendo o mais comum, é de diagnóstico mais tardio e tantas vezes incerto...). As pessoas com quem lidei, exatamente uma mulher, de importância pessoal imensurável para mim; e 15 homens com quem lidei em contexto de investigação e que me ensinaram para além do que previa sobre a volatilidade e mutação vivencial e sobre o quanto a nossa humanidade se preserva para além da memória, do pensamento, da linguagem, de alterações neuropsiquiátricas e até de personalidade. Podemos “perder” estas pessoas de forma galopante, no espaço de um ano e de forma irreversível e este processo de “luto de pessoa viva” é de uma consternação imensa para mais vitalícia e crescente: nunca nos despedimos daquela pessoa e no entanto ela já não está connosco, remetendo-nos tantas vezes à confusão de uma memória, confusão de um nome ou de um estado, ou simplesmente já não sabendo sequer quem somos. Imagine-se agora expor uma pessoa assim publicamente em nome de erros passados, por mais graves e consequentes que sejam... refiro-me concretamente ao ex-banqueiro do BES e, repito, não obstante combater e abominar tudo o que esta pessoa simbolizou no passado - a altivez, a prepotência, a autocracia, o logro, a burla, o engano, o favorecimento ilícito que lesou milhares de pessoas e um país inteiro – a exploração da sua vulnerabilidade humana, exibindo-o com um olhar perdido, corpo magro e fragilizado, ar confuso e “apatetado”, complementarmente dependente até na sua locomoção e orientação, cercado por um batalhão de gente, quais abutres da morbidez humana, foi do mais humanamente devassante (e vergonhoso) a que assisti nos últimos tempos, na televisão.

Não vou discorrer sobre as várias teorias em torno do assunto, que é “teatro”, que é “estratégia da defesa” ou sobre a confirmação ou não de especialistas do diagnóstico de Alzheimer, matéria que não cabe, mas fico a pensar, consternada e preocupada, onde é que fica a fronteira entre a Justiça e os Direitos humanos de uma pessoa doente; e a Justiça e os direitos de quem perdeu as poupanças de uma vida às mãos desta pessoa.

OPINIÃO EM DESTAQUE
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