Passaram cinquenta anos da manhã em que Portugal acordou para uma nova realidade, nos primeiros dias, titubeante e recebida com incerteza. Custava acreditar que os poderosos governantes pudessem ser apeados de uma só vez. Mas foram. Aos cochichos inicias seguiu-se o grito de liberdade, mesmo dos que não entendiam bem o que se passava. As armas adornadas com a inesperada dádiva de cravos vermelhos tornaram-se símbolo da mudança no país que, naqueles dias, nos atrevíamos a sonhar.
Nem tudo foi sereno, nem tudo foi bom, mas o nosso futuro coletivo passou a ser bem melhor do que até então. O país floresceu em todos os aspetos. Aos poucos, foram desaparecendo os meninos descalços da rua; mães, vestidas com andrajos, deixaram de tocar às campainhas, contando histórias de miséria e implorando um naco de pão, uma moeda ou uma peça de fruta para o filho de olhos gachos e fio de ranho a escorrer do nariz, que seguravam no colo; as famílias que habitavam em buracos de rocha foram resgatadas e as furnas desapareceram; as escolas alargaram-se para receber os jovens que, antes, se consideravam mais úteis se ignorantes, mas agora se queriam instruídos. A guerra nas colónias terminou e os mancebos, desnecessários para dar o corpo à luta, tiveram a possibilidade de estudar ou entregar-se a uma profissão e o serviço militar obrigatório tornou-se redundante.
A paz na Europa, onde nos integramos, e a paz no nosso país, animado por valores democráticos, permitiram-nos uma prosperidade coletiva inegável. Sim, não estamos num paraíso, mas é um facto que as gerações mais recentes cresceram com mais conforto, segurança e convictas dos seus direitos e poderes reivindicativos. Os pais e os professores tornaram-se menos austeros e mais protetores, alguns em excesso, diz-se, assim como se diz que os jovens, aninhados neste clima de segurança, se tornaram egoístas e insubmissos.
Nos últimos tempos, vem-se perspetivando a inevitabilidade de uma guerra e a necessidade de reinstituir o recrutamento militar obrigatório. Animados pelo que se me afigura uma insanidade coletiva, os inúmeros comentadores televisivos afirmam que a guerra moderna será muito mais apoiada em expertise tecnológica. Porém, e passo a citar: “Infantaria, por exemplo, continua a ser uma parte em que a massa humana e os números têm uma importância crucial. (Almirante Gouveia e Melo; Expresso, 28 março 2024).
Essa “massa humana” são os nossos filhos, os nossos netos. Com pasmo, oiço o entusiasmo para aceitar e defender o regresso do serviço militar obrigatório. Dizem que será ótimo para que os jovens aprendam reger-se por normas, a obedecer e a serem mais responsáveis. Argumentos tanto mais surpreendentes quando vindos de pais que envolvem os filhos num manto protetor, que os acompanham até à universidade como se ainda estivessem no infantário. Como reagirão à subjugação devida à autoridade militar estes pais e estes jovens que mal toleram uma admoestação?
Após décadas de paz europeia e nacional, que nos permitiram uma prosperidade inédita, soam clamores de guerra que, preveem, não ficará restrita à Ucrânia e avançará pelas fronteiras da NATO, organização a que pertencemos e para a qual teremos de contribuir, com largas fatias dos orçamentos nacionais e com a tal “massa humana” para lutar sob a sua bandeira, mesmo que em geografias distantes da nossa. Estamos mesmo dispostos a pagar o preço?