Quando eu era pequena havia uma vizinha, que por sinal faleceu bem velhinha, que tinha na sua propriedade uma nespereira. Nos anos 80 qualquer fruto colorido brilhando numa árvore era chamariz certo de abelhas, pássaros, lagartixas e crianças. A minha vizinha parece que não se importava muito com determinada fauna, mas crianças era espécie que, decididamente, não a agradava, sobretudo trepando a nespereira, mesmo que quase não suportasse o seu peso em fruto.
Como a senhora não vivia perto da árvore, todos os anos, para impedir que lá chegássemos (eu também fazia parte dessa fauna infestante da criançada incómoda) cortava os galhos mais baixos deixando as nêsperas inacessíveis às mãozinhas terríveis dos pequenos seres impertinentes. Ficávamos cá por baixo, na base do tronco a salivar, observando os pássaros debicadores, as lagartixas rastejantes, as abelhas a emitir zum zuns. A fruta não era decerto para nós, a não ser que acometida pelo efeito de Newton, nos caísse na cabeça. Felizmente mais leves que as maçãs…
Os anos foram passando, a árvore foi crescendo, a senhora encolhendo e a criançada se tornando adulta.
As crianças desinteressaram-se das nêsperas que agora povoam beiras de estrada ignoradas, a senhora colheu os frutos da sua amargura, soberba ou egoísmo e deixou, ela própria de conseguir aceder à alta nespereira a que tinha efetuado um verdadeiro corte de folhagem "à tigela" e assim, colhê-los literalmente, passando, solitária, a esperar na base do tronco pelo efeito de Newton, observando os pássaros debicadores, as lagartixas rastejantes, as abelhas a emitir zum zuns. No silêncio que agora substituía os sons emitidos pela fauna humana pequenina que tanto a irritava.
A nespereira com corte à tigela permaneceu por muitos anos, abandonada, como símbolo do que os maus princípios, os maus sentimentos podem fazer à sociedade, mesmo que a um seu pequeno grupo, mesmo que a um seu único elemento.
Hoje, as nêsperas que colorem beiras de estrada pouca fome matam, a não ser aos olhos cansados de confinamento que se saciam cromaticamente, não passando de um prazer gastronómico (dos bons) e para amarelar os dentes produto das massivas quantidades de ferro que possuem.
Aquelas, as da nespereira com corte à tigela, ficaram ali, caídas no chão, por muito tempo após o desaparecimento da dona, à espera das crianças que não voltaram. Porque ninguém volta à amargura, à soberba, ao egoísmo e nespereiras, há muitas. Crianças…cada vez menos.
Egos, por outro lado, há muitos e inflados. Quem sabe não sobra uma ou outra nêspera para colocar nos corpos cujos egos habitam, naquele sítio a que se refere o ditado?