Há muitos anos, era, ainda, a minha casa dividida em andar para viver e andar para trabalho agrícola e pecuário e a água era de “pena” e podia escorrer até encher o lagar do vinho, resolvi arranjar dois peixinhos que me ofereceram num saco de plástico cheio de água, nesse mesmo lagar, uma suíte presidencial para os dois peixes a que denominei, por falta de imaginação, o Xuto e o Pontapé.
Os dois peixes, não sei de que sexo, género ou identificação “peixal” nadaram uns dias pelas novas instalações que nem precisavam ser abastecidas, visto que a água constantemente corrente produzia lodo e sanguessugas carnudas para a sua saudável alimentação, ou seja, ao contrário dos outros mil trezentos e quarenta e nove bichos que partilhavam a propriedade connosco, com estes não me tinha de preocupar, era deixar nadar e andar.
Mas, como criança curiosa e inquieta que era, na altura com uns oito anos, pensei que os peixes estavam muito expostos, se bem que o lagar ficava à sombra e protegido da chuva (não fossem os peixes se molhar e constipar) e achei por bem colocar meio bloco de cimento para que tivessem onde se esconder e caso fossem um casal, quiçá, procriar, que está visto que os peixes são púdicos.
Submergi o meio bloco de cimento, dos maiores e resolvi deixar a gravidade fazer o resto. O que não tinha cogitado era na gravidade do fator gravidade. Após o bloco assentar no fundo do lagar, para aí com 50 cm de profundidade, só via o Pontapé, cadê o Xuto? Desaparecera. Foi quando levantei o dito bloco e vi o pobre Xuto debaixo do bloco de cimento, de lado, deitado sobre o fundo do lagar.
Num misto de culpa, tristeza, curiosidade e infantilidade, fui chamar as minhas amigas para prepararmos o velório do Xuto, que seria com pompa e circunstância. Fomos colher flores, azedas e margaridas de levada, para fazer as coroas e os bouquets, uma caixinha de dominó (cujas pedras levaram caminho incerto), para servir de urna e, finalmente, onde hoje existe um churrasco, abrimos a cova para descer Xuto à eternidade.
Nas cerca de duas horas que estivemos nestes preparos ninguém se lembrou do cadáver do peixe, só mesmo quando começaram as exéquias nos aproximamos dos bichinhos. Xuto era cinzento-claro e Pontapé era vermelho com barriga dourada, Pontapé estava parado ao lado de Xuto, a velar o corpo, pensávamos nós, mas não, quando mergulhei a mão para recolher os restos mortais do Xuto rodopiou avidamente criando mini anéis de água que formavam micro ondas nas paredes do lagar.
Xuto não tinha perecido, Xuto tinha ficado paraplégico, entravado para a vida.
As flores secaram, o buraco foi se tapando naturalmente, as amigas recolheram a casa frustradas pela vida que insistia permanecer no corpo de Xuto e Xuto ali ficou, no mesmo sítio, durante mais cinco anos, com Pontapé sempre ao seu lado. Dava uma volta, sim, mas regressava à companhia do seu parceiro.
Foi ali que descobri, os amigos são aqueles que nas melhores ocasiões brindam connosco e nos abraçam, os Amigos são aqueles que quando estás no fundo do poço, te dão a mão.
E se ficarem no fundo do poço, literalmente, como o Xuto, não estarão sozinhos de qualquer forma.
Obrigada a todos os meus Amigos e amigos também.
Feliz setembro a todos.