A minha avó, Maria da Conceição, dos Rubanos dos Canhas, faleceu com 48 anos, um par deles antes de eu nascer, o meu avô ficou sozinho com a sua única filha. Vivíamos juntos e eu amava de paixão aquele homem alto, de chapéu, casaco de pele preta com gola de pelo e roupão de lã. Confesso que, por vezes, duvido se o meu amor foi cultivado pelas memórias ou se era mesmo real, para concluir que, era e é mesmo real. Foi o meu avô que me introduziu à agricultura e aos bichos de toda a espécie e que formou a parte rústica da minha transversalidade, aquela que tanto me orgulha: ser de "campe".
Do alto dos meu cinco, seis anos acompanhava-o para todo o lado: ia regar a fazenda, ou melhor, servir de alarme quando a água chegava ao fim do rego, com os meus pezinhos descalços era só sentir a chegada da água e dar o sinal. Tapava a levada com trapos velhos e uma pedra e seguia para o rego seguinte.
Outra atividade: cuidar das vacas, das quais ainda cheguei a provar o leite diretamente da teta, coisa que Pascal certamente não aconselharia, mas cuja experiência e sensação trago até hoje. O leite quente a borbulhar, numa caneca de alumínio. Quando íamos ao Serrado, sítio onde tinha a outra vaca, o meu avô pegava-me ao colo para eu tirar a enorme chave do palheiro do esconderijo. Era o nosso segredo, só nós dois sabíamos onde estava a chave e eu sentia-me importante por tal conivência.
O meu avô não era amoroso, não dava abracinhos ou beijinhos, não dava, mas levava. Da vez que a vespa me picou o pé escalei o seu corpo alto como um macaquinho aos gritos, o meu avô confortou-me, sem grandes lamechices, foi buscar alho e encostou a lâmina duma faca, para o frio atuar, a picada era dolorosa, mas só me recordo da escalada, do alho e da lâmina carregadas do amor que me tinha e da forma como o sabia transmitir.
O meu avô usava uma banheirinha verde-claro onde todas as noites lavava os pés com água e sal grosso, esfregando um no outro. Anos mais tarde vi essa banheira no pombal toda desfeita, e fiquei desfeita, não consegui salvá-la. Salvei o Menino Jesus, o copo onde bebia o seu copinho de vinho ao almoço e… o copo da Santa Unção.
O ponto alto dos meus dias eram as idas ao Serrado, não só cuidar da vaca como das batatas-doces e à Ribeira Mina, onde passava um ribeirinho, havia peros e maçãs e morangos silvestres, rói-te de inveja, Heidi! O transporte descendente numa corce feita por ele, onde carregava, empurrando uma corda, produtos da terra e ervas para os animais carregava, inexoravelmente, outro animalzinho, este que quase quarenta anos depois vos escreve, era a adrenalina, descer a inclinação do Pico em cima duma saca de semilhas e erva, gritando de felicidade enquanto a minha mãe esperava a chegada com um sorriso nos lábios.
Entretanto o meu avô adoeceu e cerca de um ano depois, Deus levou-o, porque Ele leva os que mais ama e com ele, a minha infância.
Eu não tenho Ponte no nome, um trocadilho que fizeram na Conservatória com Ponte e Madalena, fez-me Ferreira, mas o meu filho é Ponte, de Ponte, como o meu avô e se tiver metade da dignidade daquele homem alto, introvertido e honrado, então serei uma mãe orgulhosa.
Amo-te, avô.