MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA

22/07/2022 08:00

Um destes dias, deparei-me com um autocarro em manobra de inversão de rota. Parei e aguardei que o gigantão emergisse da ladeira pela qual deslizara em marcha atrás. De volta à estrada principal, lá do alto do habitáculo, ergueu-se um braço em saudação de agradecimento, sublinhado pelo sorriso aberto no rosto de uma jovem com ar de quem gosta do que faz. Correspondi, com um aceno semelhante, e arrancámos em direções opostas.

Com o seu jeito alegre e descontraído na mente, fui refletindo que acabara de ver algo impensável meio século atrás: uma mulher ao volante de um veículo pesado. Dir-me-ão que tal é hoje possível porque a mecânica evoluiu e controlar uma viatura daquela dimensão não exige a força física que antes exigia. É um facto, porém acredito que o mais impeditivo era o preconceito instalado de ser a mulher menos dotada, se não incapaz, para conduzir. A alteração de estilo de vida na sociedade seria o grande impulsionador para o acolher de novas perspetivas. À medida que as mulheres entraram no mercado laboral, com as crianças a frequentar escolas e outras atividades, a condução no feminino tornou-se útil para cumprir as múltiplas incumbências que a situação familiar impunha e passou a ser algo comum.

Os meus pais consideravam que, sendo o automóvel o meio de mobilidade do nosso tempo, saber usá-lo fazia parte dos ensinamentos que deviam facultar aos filhos. Por isso, feitos os dezoito anos, concederam-me a emancipação, a fim de poder cumprir essa parte da minha formação. Sem entusiasmo, mas como filha obediente, cumpri.

Após o exame de condução, a lei obrigava-nos a exibir, no carro, um autocolante amarelo, popularmente batizado por "ovo estrelado". O dístico tinha o propósito de lembrar o limite de velocidade a que o condutor novato devia circular, assim como alertar toda a população para o facto de ali seguir um potencial aselha. Como todos sabemos, a maldade humana encontra divertimento em arreliar os outros, pelo que era frequente os recém-encartados serem vítimas de remoques e buzinadelas e ainda mais caprichavam se fosse uma mulher ao volante. Quando tal me acontecia, enervava-me, corava, ficava atarantada, o que, como é bom de ver, só piorava a situação.

Um dia, à hora de ponta, subi a Rua 31 de janeiro e atravessei para a 5 de outubro, com o propósito de seguir para o largo da Cruz Vermelha. O automóvel à minha frente parou e, sem espaço para me colocar na faixa da direita, como pretendia, fiquei de viés, com a traseira do carro a ocupar uma parte da faixa esquerda. Todo o trânsito estava parado e eu lá no meio, adornada com o meu "ovo estrelado", atravessada sobre a ponte. Atrás de mim, um taxista desatou a buzinar. Encolhida, espreitei pelo retrovisor e vi-o a vociferar e a esbracejar. Para onde é que o homem quer que eu vá?, pensei, sentindo-me absolutamente injustiçada. Num acesso de irritação, baixei o vidro, estiquei-me para fora da janela e, virando-me para o briguento, gritei:

— Estás com pressa, vai pelo fundo da ribeira! — e voltei a acomodar-me ao volante.

Ainda a rodar a manivela para fazer subir o vidro da janela e atónita com a minha atitude, fui acometida por um ataque de riso. Descontraí e, por incrível que pareça, o automobilista rabugento também sossegou. Acreditei ter descoberto um bom antídoto para o nervosismo.

E foi assim que o sorriso confiante de uma jovem ao volante de um autocarro me transportou às memórias dos tempos do "ovo estrelado".

OPINIÃO EM DESTAQUE

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

No que diz respeito à Madeira, qual é a sua opinião sobre o Orçamento do Estado para 2025?

Enviar Resultados

Mais Lidas

Últimas