Um destes dias, deparei-me com um autocarro em manobra de inversão de rota. Parei e aguardei que o gigantão emergisse da ladeira pela qual deslizara em marcha atrás. De volta à estrada principal, lá do alto do habitáculo, ergueu-se um braço em saudação de agradecimento, sublinhado pelo sorriso aberto no rosto de uma jovem com ar de quem gosta do que faz. Correspondi, com um aceno semelhante, e arrancámos em direções opostas.
Com o seu jeito alegre e descontraído na mente, fui refletindo que acabara de ver algo impensável meio século atrás: uma mulher ao volante de um veículo pesado. Dir-me-ão que tal é hoje possível porque a mecânica evoluiu e controlar uma viatura daquela dimensão não exige a força física que antes exigia. É um facto, porém acredito que o mais impeditivo era o preconceito instalado de ser a mulher menos dotada, se não incapaz, para conduzir. A alteração de estilo de vida na sociedade seria o grande impulsionador para o acolher de novas perspetivas. À medida que as mulheres entraram no mercado laboral, com as crianças a frequentar escolas e outras atividades, a condução no feminino tornou-se útil para cumprir as múltiplas incumbências que a situação familiar impunha e passou a ser algo comum.
Os meus pais consideravam que, sendo o automóvel o meio de mobilidade do nosso tempo, saber usá-lo fazia parte dos ensinamentos que deviam facultar aos filhos. Por isso, feitos os dezoito anos, concederam-me a emancipação, a fim de poder cumprir essa parte da minha formação. Sem entusiasmo, mas como filha obediente, cumpri.
Após o exame de condução, a lei obrigava-nos a exibir, no carro, um autocolante amarelo, popularmente batizado por "ovo estrelado". O dístico tinha o propósito de lembrar o limite de velocidade a que o condutor novato devia circular, assim como alertar toda a população para o facto de ali seguir um potencial aselha. Como todos sabemos, a maldade humana encontra divertimento em arreliar os outros, pelo que era frequente os recém-encartados serem vítimas de remoques e buzinadelas e ainda mais caprichavam se fosse uma mulher ao volante. Quando tal me acontecia, enervava-me, corava, ficava atarantada, o que, como é bom de ver, só piorava a situação.
Um dia, à hora de ponta, subi a Rua 31 de janeiro e atravessei para a 5 de outubro, com o propósito de seguir para o largo da Cruz Vermelha. O automóvel à minha frente parou e, sem espaço para me colocar na faixa da direita, como pretendia, fiquei de viés, com a traseira do carro a ocupar uma parte da faixa esquerda. Todo o trânsito estava parado e eu lá no meio, adornada com o meu "ovo estrelado", atravessada sobre a ponte. Atrás de mim, um taxista desatou a buzinar. Encolhida, espreitei pelo retrovisor e vi-o a vociferar e a esbracejar. Para onde é que o homem quer que eu vá?, pensei, sentindo-me absolutamente injustiçada. Num acesso de irritação, baixei o vidro, estiquei-me para fora da janela e, virando-me para o briguento, gritei:
— Estás com pressa, vai pelo fundo da ribeira! — e voltei a acomodar-me ao volante.
Ainda a rodar a manivela para fazer subir o vidro da janela e atónita com a minha atitude, fui acometida por um ataque de riso. Descontraí e, por incrível que pareça, o automobilista rabugento também sossegou. Acreditei ter descoberto um bom antídoto para o nervosismo.
E foi assim que o sorriso confiante de uma jovem ao volante de um autocarro me transportou às memórias dos tempos do "ovo estrelado".