Fui à Madeira, e é sempre bom ir a casa, apesar de a minha casa já não se cingir à Madeira, ter muitas entradas, e o seu tamanho ser proporcional à nossa disponibilidade para amar; por outro lado, a saudade também. Contudo, o que vejo no âmago da casa é sempre o mesmo: quem a habita, ou a memória de quem a habitou. O aí madeirense é um aqui à distância de um telefonema, de uma mensagem, de um pensamento, de um odor, de flores que quando a saudade aperta vou à sua procura nas estufas dos jardins botânicos, de frutas e outros que não estão à vista, mas que é uma festa quando os encontro: os tabaibos, as anonas, os tomates-ingleses, a pera-abacate, o inhame, e, claro, a banana. O fruto delicioso lembra-me sempre muitas coisas: uma delas é que talvez possa ser uma metáfora do estado a que a Madeira chegou: fruto de uma planta trepadora, e da moda, a monstera deliciosa ou costela-de-adão, dá tantos frutos, que caem e apodrecem nos jardins e encostas da Madeira, mas, no Mercado dos Lavradores, é vendido a um preço incrível aos turistas e aos poucos madeirenses que dele gostam.
Poucos dias antes de viajar até à Madeira, soube que o Maurício Reis - cofundador com Cecília Vieira de Freitas da galeria Porta 33, número daquela porta antiga e não muito grande, que, para alguém como eu, adolescente num arquipélago onde era difícil chegar e talvez ainda mais difícil sair, quando granjeada, fazia-nos entrar num ilustre mundo desconhecido, não só o da arte, e de todas as mil e uma paragens aonde nos pode levar, mas também ao contínuo questionamento sobre o nosso lugar e o que devemos fazer para desenvolver um projeto de comunidade que valha a pena. Não era possível não ter enchido aquele espaço - por debaixo dos jardins suspensos, como me explicou a Laíz - para dizer até logo ao Maurício que ia através de nós, coincidindo com a abertura da exposição que brotava de uma residência de Francisco Janes no Porto Santo, na Escola da Vila de Chorão Ramalho, tendo o artista vocação, como explica Nuno Faria, para a escuta das pessoas, dos lugares, e daquilo que as une, o ar, perscrutando a «atração pelo mistério de ser outro».
Foi também esse mistério que me levou a estar muito atento quando Musa - e ainda não sabia o seu nome nem que era paquistanês - falava numa língua que não conseguia identificar com uma rapariga, que depois vim a saber ser a empregada da sua loja de tecidos, vestidos para festas - a comunidade nepalesa tem sempre muitas festas, disse-me ele - e muito mais coisas. Musa fala nepalês pois é casado com uma nepalesa.
Não contava encontrar um paquistanês estabelecido na Madeira, mas aguçou a minha curiosidade. Perguntei-lhe sobre Imran Khan, estrela do cricket e antigo primeiro-ministro paquistanês preso desde 2023, mas não sobre o atual presidente Zardari, cuja esposa, Benazir Bhuto, se tornara a primeira mulher primeiro-ministro num país muçulmano, em 1988, acabando por ser assassinada em 2007. Tempos depois, vi a reportagem da RTP Madeira sobre o Ramadão na ilha, dando conta que aí moram cerca de 2000 muçulmanos, na sua maior parte provenientes do Bangladesh. O debate nas redes sociais foi o que costuma ser: cru e não reproduzível aqui. Será tão difícil interessar-se pelo outro, o que nos multiplica a todos, em vez de nos começarmos a dividir e subtrair?
Este interesse por pessoas também o encontrei no filme Lumière, l’aventure continue, que chegou às salas de cinema francesas e que compila uma boa parte das imagens filmadas nos primórdios do cinematógrafo - literalmente, a escrita do movimento - pelos irmãos Lumière, que seguiram o preceito do seu pai, que era o de retirar do cinematógrafo de Edison a imagem e projetá-la. Por que não projetar a bondade em movimento que existe em nós? Talvez assim, da mesma maneira que se pensava que quando o cinematógrafo se disseminar, a morte deixará de ser absoluta.