MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

Advogada

26/10/2023 08:00

A mais recente tragédia trazida pelo lume avivou na minha memória os anos da minha infância, quando as casas se rodeavam de palheiros que resguardavam gado, serviam de despensa e ainda algumas, poucas, casas de colmo que lá dentro abrigavam famílias inteiras e numerosas.

Era eu bem pequenina, dentro dos anos duma mão cheia, quando saí ao caminho para ver as vistas, ou tirar uma soneca no caminho deserto, quando uma nuvem de fumo enorme, alta e escura se cruzou no meu limite visual. Era uma casa de colmo incendiada inadvertidamente por uma criança que lá vivia. Fui chamar a minha mãe que se juntou ao já existente burburinho que se levantou entre a vizinhança com baldes e bidões, água da levada desviada para apagar o lume. Na altura não havia bombeiros, embora a Ponta do Sol já os tivesse tido, durante grande parte dos anos oitenta os lumes dali eram apagados pelas gentes dali unidas com um único objetivo comunitário.

Não muito tempo depois, as demais construções cobertas de colmo tiveram o mesmo destino, uma criança, um bêbado, um fumador descuidado, como hoje, eram as mais prováveis fontes de ignição.

E lá se formava a fila de gente a passar balde a balde, mão a mão, desde a levada para apagar os fogos por entre gritos de desespero, caras cobertas de cinza molhada, vaca resguardada ao longe, a ruminar observando daí, impávida, como se nada fosse, o seu castelo a se reduzir a quatro paredes de pedra escura.

Não eram raros os reacendimentos, não esqueçamos que era um sítio unido contra as chamas e não um grupo treinado que sabia as manhas do lume.

Voltava o burburinho, os gritos e depois…o silêncio. Um silêncio sepulcral, que nem as aves se atreviam importunar. O silêncio que só quem já passou por terra, objetos, casas ardidas conhece, um silêncio ensurdecedor de luto, de negrume, de morte, de resignação.

Um silêncio assustador, como se o fogo tornado cinza fosse manifestação de forças do mal a se regozijar.

Na casa de colmo que ardeu vivia gente, a minha tarefa foi levar chá dentro dum bule de esmalte azul-escuro. De vez em quando dou de caras com o bule e sinto o silêncio, as forças do mal, a casa desfeita a cinzas.

Possamos continuar a agir em corrente solidária, de balde mão em mão, até o silêncio final, da redução a cinzas, porque, tal como em todos os aspetos da vida, o mal não pode vencer. Nem vai.

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