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Artigo de Opinião

HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA

3/02/2023 08:00

Às vezes, cruzo-me com pessoas que não vejo há algum tempo e uma das questões recorrentes é se já estou reformada. Respondo que sim e se os meus interlocutores são mais jovens exclamam: "Que bom! Quem me dera!". Sorrio e digo-lhes que não tenham pressa. Eles reiteram a sua urgência, o desejo de se libertar dos horários, de cumprir tarefas por obrigação, da sujeição ao julgamento de patrões, chefes ou dos seus pares. Sonham-se em dias só deles, sem a correria entre afazeres. Não contraponho, calo-me. Calo-me porque os compreendo, porque também um dia me antecipei no gozo de não ter obrigações; no usufruto do que me dá gosto fazer e na hora que me apetecer. Calo-me porque não lhes quero dizer que a reforma que nos liberta da obrigação laboral marca também a abertura do último capítulo do livro da vida. Não sabemos qual a sua extensão. Ele pode ser longo ou curto, mas será o último e epílogo, se o houver, outros o escreverão e dele nunca saberemos.

Nesta fase, dedicamo-nos, de facto, a algumas das coisas que antes não tivemos oportunidade de fazer. Desistimos de outras tantas porque descobrimos que jamais haverá tempo para as concretizar. Conformamo-nos. Continuamos a caminhada com alegria, procurando cumprir o que dizem importante para manter, tanto quanto possível, mente e corpo saudáveis. E tememos o dia em que algum deles nos possa falhar e nos tornemos empecilhos abandonados num corredor de hospital, dependentes da boa ou má vontade dos profissionais com que nos cruzarmos. Ou num dispendioso — o que não é garantia de qualidade — lar geriátrico, sentados quietos, numa roda de velhos, frente a um televisor que fala sem nada nos dizer, sob a vigilância de funcionários disponíveis e dedicados, ou não; empáticos e afáveis, ou não; que gostam do seu trabalho e cumprem pelo menos os mínimos, ou o abominam e só pensam na hora da saída ou, quem sabe, no dia da reforma.

A longevidade do ser humano tem vindo em crescendo nas últimas décadas. Porém, a sociedade não se tem preparado para tal com a celeridade que se impunha. Nas gerações que nos antecederam, o cuidar dos idosos ficava dentro do seio familiar e, de modo geral, sobre os ombros das filhas que espremiam tempo das suas tarefas domésticas e familiares para atender à velhice dos pais. A devoção com que o faziam ficava calada por detrás das quatro paredes. Ninguém sabia e todos nos confortávamos com a ideia de que tudo estaria bem. A realidade mudou. Aos afazeres domésticos somaram-se, para as mulheres, os deveres profissionais e cuidar dos velhos torna-se um esforço excessivo. Para além disso, ao contrário do que antes era comum, hoje o clã familiar não permanece no mesmo aglomerado; os filhos vão saindo, cada um tem a sua casa, por vezes, bem distante e o apoio aos idosos fica mais difícil.

É fundamental que nos organizemos. É urgente a construção de espaços, pensados de raiz para essa função, onde os velhos dependentes possam permanecer com dignidade. Dar formação a quem tenha apetência para trabalhar neles e oferecer-lhes condições salariais que lhes permitam dedicar-se a tempo inteiro num só local, em vez de, durante um dia, andarem a acumular turnos e a consequente fadiga, saltando de uma instituição para outra. Repensar e multiplicar o apoio aos cuidadores domésticos nas situações em que o recurso a um lar não seja opção.

Se assim não for, por mais bonito que tenha sido o livro da vida, o último capítulo será, inevitavelmente, uma história de horror.

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