Esta semana, no Congresso sobre Direitos Humanos que se realizou em Alenquer, tive a oportunidade de constatar o cuidado com que na vila e nas aldeias em redor se cuida do património, na sua reabilitação e na manutenção de uma traça que é identificativa da história, do lugar e das gentes. Sente-se nas ruas, nas casas – que não se destroem, numa política de deitar abaixo e construir por cima de novo, com volumetrias diferentes e sem respeito pela arquitetura da região –, nas igrejas, na reconversão de património em museus, centros interpretativos e de educação, conjugando o moderno com o antigo. Nas gentes, sente-se o orgulho da comunidade na alma dos seus monumentos, das pequenas casinhas preservadas e transformadas em residências para estudantes ou de apoio às atividades de comércio e empresas.
Ficarão para sempre comigo as sensações que vivi quando cheguei ao cair da noite a Aldeia Galega e o céu escuro se misturava com o branco alegre das casas, com o som do sino que chamava à missa e os passos que se ouviam no chão empedrado repetiam os sons de quem ali tinha passado centenas de anos atrás. Uma conjugação entre comunidade e vontade, lugar e sonho do lugar. Levada ao conhecimento de todos pela gravação de uma telenovela, “Festa é Festa”, a Aldeia Galega foi escolhida como “location” na mesma lógica que há anos atrás se privilegiou Santar – pela valorização do ambiente tangível e real e o cuidado amoroso do património.
Usei “amoroso”, porque de amor se trata. Quando se fala da Madeira que queremos deveríamos senti-lo para podermos projetar a região que fisicamente desejamos, do património que temos e de como queremos que seja tratado. Os bens culturais fazem parte de uma memória histórica que não deveríamos nunca estar dispostos a perder, porque constituem recursos únicos e insubstituíveis que só uma determinada região ou país possuem. Menosprezá-los, destrui-los é apagar o património cultural que tivemos a fortuna de herdar em séculos de história.
A Quinta das Lagartixas, de cerca de 1790, segundo o site “Arquipelagos”, coordenado pelo Prof. Dr. Rui Carita, assim conhecida pelo nome dado às proprietárias, as Irmãs Lagartixa, pertença de 1924 a 2014, quando foi doada à Região, da família de Maria do Carmo Leite Monteiro Rodrigues, encontra-se hoje em perigo de demolição num projeto de construção de apartamentos do Governo Regional em conjunto com a Câmara Municipal do Funchal. Inserida numa paisagem arquitetónica já em si descaracterizada com as contínuas “modernizações” ditadas pelas chamadas necessidades habitacionais (como se não houvesse outras possibilidades de áreas de construção...), a Quinta das Lagartixas possui uma identidade arquitetónica própria, como bem lembrou o Doutor Emanuel Gaspar, e uma importância histórica e de memória relevante para a comunidade, como também sublinhou o Prof. Dr. Nelson Veríssimo.
No entanto, continuamos a destruir o património de todos como se de nada se tratasse: daqui a uns anos, não haverá casas de traça madeirense, com a sua cantaria, as torres avista-navios, as pequenas e grandes quintas serão fotografias de um passado que não se soube respeitar e tornar património rentável, capitalizável em termos de turismo e, mais importante, como identidade de um povo. Porque não aproveitar e fazer na Quinta das Lagartixas um centro interpretativo da História do Funchal? Ou dos poetas e escritores madeirenses? Ou das relações históricas que o comércio promoveu com várias partes do mundo? Ou dos visitantes ilustres? Ou da história da pirataria, escravatura, da Inquisição na Madeira... ou, ou, ou, ou... numa lógica de fruição dos bens culturais.
A recuperação de estruturas arquitetónicas é talvez o desafio mais delicado que enfrentamos, porque é diferente de um quadro ou de uma escultura, mais facilmente musealizável e protegida. Se não têm uma função, os legisladores, quando insensíveis e pouco preparados culturalmente, desvalorizam-nos e imaginam outros edifícios sem alma onde havia pequenas quintas e jardins que contam histórias. O dever dos governantes é proteger os bens de forma a assegurar a sua transmissão às gerações futuras, criando novas funções que os valorizem e não os destruam. Amorosamente. Porque o que se destrói não volta e a alma da comunidade vai-se perdendo num soar de sinos que não chama à missa, mas anuncia o fim.