MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

5/03/2023 06:53

A primavera demorava a chegar e por vezes chegava a medo e por isso o roxo dos dias de Quaresma roubavam espaço e pintavam-nos as almas. Já não havia o cheiro a goiabas dos dias de Festa e as anonas começavam a rarear nas árvores e nas fruteiras. Tudo era penitência de sabor mais amargo que doce. O tempo era de reflexão e a avó ainda era das que "guardava jejum" naqueles longos 40 dias de preparação para a Páscoa. Pedia-nos que pensássemos nos nossos pecados e aqui-del-rei se comêssemos carne a uma sexta-feira. Não havia piedade para os prevaricadores, mesmo aqueles com meia dúzia de anos, que se esqueciam que fiambre também estava na lista de proibidos daquelas sextas-feiras de calafrios.

Foi o que aconteceu daquela vez. A pequena não conseguia conter os nervos que lhe invadiram o pequeno corpo e as pernas tremiam-lhe que nem varas verdes. O medo de ter atraído uma enorme desgraça sobre toda família, quem sabe se por toda a aldeia, por causa daquela inocente fatia de fiambre comida ao lanche era um peso insuportável para a sua consciência a despertar. Não sabia se assumia ou guardava o segredo para si. Ensimesmou-se, pensando que se ninguém viu, não tinha acontecido.

Passou o dia nesta angústia a contabilizar este e outros pecados, afinal a jarra que a mãe gostava não se tinha partido sozinha como alegara umas semanas antes.

O vento soprava cada vez mais áspero no alumínio das janelas e a noite instalou-se num alvoroço de assobios e ramos de árvore a abanar. Era um prenúncio de fim do mundo certamente. Já tinha ouvido falar das 10 pragas do Egito e por isso pensava que a seguir cairiam calhaus dos céus. Então, antes de ir para a cama, confessou o enorme pecado: Fiambre numa fatia de pão duro. Estava pronta para o fogo do inferno que a esperava. Explicaram-lhe que o arrependimento era importante, que havia uma hierarquia de pecados - um bife teria sido mais grave- e que Deus era bondoso, sobretudo com as crianças. Adormeceu, por fim. No dia seguinte fazia sol, a avó amassava o pão da semana, numa verdadeira lição sobre renascimento e esperança. A primavera, com a fruta de verão a começar a luzir nas árvores não era afinal outra coisa.

Sandra Cardoso escreve ao domingo, de 2 em 2 semanas

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