Escrevo. Escrevo para envelhecer, enquanto as palavras ainda suportam a minha mão, enquanto os meus olhos podem ainda descer pela garganta do mar. Hei-de morrer para que o meu corpo viva dentro da água de uma sombra, num corpo que se comove para sempre diante do mesmo homem e se inaugura de uma rotina nunca banal.
Escrevo porque a mão me vence e se basta para me segurar o corpo. É uma mão silenciosa e definitiva, sem glória nem ambição. Vive.
Uma sombra é também um corpo, como o vento que lhe torna possível a invenção da pele e o silêncio dos ossos, um lume que só procuramos acima de nós pela repetição, pela eterna presença do sono dos homens. É por dentro dessa falha que a minha mão vai, em silêncio e sem qualquer propósito, movendo-se incorrigivelmente até ao próximo fogo. Uma palavra arde mais quando o dia não chega, quando o filho crescido se sagra nos olhos exaustos da mãe. Mas as palavras não chegam para invocar um corpo, ainda que este se cumpra no escuro e o escuro seja, por vezes, uma mão desconhecida e implacável, inclinada para o abismo e para o milagre. Escrevo por cima do mar, escuto desse escuro a beleza de uma intimíssima resignação, o brilho da resposta que é tão somente uma espera fortificada sobre um corpo que não a sabe. Escrevo pelo medo e pelo calor da sua ínfima semente, uma espécie de ternura donde caio sempre que os meus braços se cansam de repetir. Escrevo para que a sombra me persiga e me encontre, para que existam a casa e o homem dentro dela, para que o papel guarde o sangue da minha mão em falência como a inquietação maior. Lúcida e precisa, jamais interventiva.
Escrevo pela inutilidade, pelo sopro incandescente que ultrapassa a carne do meu coração, escrevo para poder envelhecer um pouco antes da morte, para que a alegria não seja, nesse instante, devastadora. Talvez escreva, ainda, para saber voltar o corpo para o mar e carregar todos os músculos da sombra; quase como se tivesse nascido numa ilha, antes de dela ter nascido.