O vestido da primeira comunhão fazia calor e a renda dava comichão. Apesar disso, o olhar da mãe, embevecido como são os olhos maternos sabem ser, num misto de mel, amor e condescendência, obrigavam a esconder o amuo, entre as melenas da trança inglesa que compunham o quadro surrealista que ali se montava.
Era um suplício que o vestido, apesar de mais curto, ainda servisse um ano depois. "Que linda", garantia a mãe, inspecionando as unhas, enquanto a pequena olhava desgostosa para as árvores e muros e tudo o que não podia trepar naqueles preparos. O coberto papa, posto no chão para evitar desastres até a hora da procissão, provocavam cócegas nos pés pequeninos, mas não faziam esquecer os puxões que a trança apertada obrigava. Que tinha de ser ou, em menos de três minutos, o cabelo ficava em desalinho, explicava a mãe. Não via grande problema, mas a progenitora arregalava os olhos. Que era um dia especial.
A avó concordava e ia tirando medidas ao ser angelical à sua frente. Que escondia arranhões, nódoas negras e esfoladelas debaixo de rendas que faziam comichão e davam calor. Que trepava barrancos, subia a árvores e calcorreava as ruas da aldeia de bicicleta até o sol se esconder e a mãe chamar para jantar. E que sonhava com o dia da Festa para jogar à apanhada e às escondidas por cima do palco ou por baixo do coreto. Nem parecia a mesma. Mas primeiro, teria de ir à missa, que era longa e tinha músicas que pareciam não acabar. Não compreendia o fascínio dos adultos com a solenidade da cerimónia. Porque não podia ser uma missa igual às outras?, perguntava. A avó não dava hipótese às dúvidas existenciais. "Que olhasse para Jesus". Olhava, mas aborrecia-se, ao menos Jesus não deveria ter calor ali na cruz, com um pano que parecia uma fralda. Ria-se. A avó fingia que não achava graça e lançava o olhar reprovador das avós, uma mistura de canela, delicadeza e impaciência. E por fim, lá seguiam na procissão, ao lado do andor, as meninas da primeira-comunhão, para deleite das mães e avós da freguesia. Mas a pequena só pensava que no ano seguinte talvez o vestido já não lhe servisse e certificava-se que as mangas já estavam a ficar curtas. Não suportava as rendas e sentia o olhar trocista dos primos mais crescidos. Pensava no algodão doce que iria ganhar pelo bom comportamento e tolerância ao desconforto. Talvez um colar de doces. Missão cumprida. A mãe estava orgulhosa, com os elogios, no adro da igreja, à candura da menina, que se impacientava, para mudar de roupa e poder brincar. Que tinha sido a última vez, pensava. Até que ouve a senhora Maria costureira garantir que o vestido tem folga, que ainda consegue arranjar para o ano seguinte.